segunda-feira, 28 de setembro de 2009

arte na cidade

Conheci uma cidade que era toda pintada. As suas ruas eram de cidade, desenhadas pela cidade: cruzamentos, esquinas, subidas, curvas, e todas essas invenções de cidade. Depois, a medida que ia amadurecendo a cidade caminhava com o mundo, e se quisesse ainda ser cidade, deveria portar-se como tal. Não bastavam curvas, esquinas, descidas, cruzamentos: a cidade precisava seguir o andamento cidade. Suas esquinas, retas, cruzamentos e curvas agora ganhavam pinturas de catálogo, placas, normas e cartazes gigantes. Isso passou a ser o que se entendia por cidade. O chão agora era dividido em dois por umas listras, amarelas, duplas, picotadas, de acordo com o ritual ou finalidade. E a cidade virou arte. Pare, Estacione, vejam quanta beleza! Me pus a observar a beleza da vida a partir dessas pequenas transgressões que uma cidade impõe: suas pixações servem pra quê? suas placas servem pra quem? suas sinaleiras o que escondem? Mas quanta beleza há nessas convenções! Olha o arranjo de uma cidade, - cinza!, de olhos vermelhos amarelos verdes! Olhe a orquestra de buzinas, elas são a cidade, olha o passaro - ei! o que um pássaro faz ali? se ele é a cidade também. O pássaro, as pombas, os cachorros, os carros, o esgoto. A cidade é linda.
À noite a cidade é mais caprichosa. Se colore e se veste com roupas de cidade. A noite, como o pássaro, é também essa cidade. O que faz a cidade-cidade. O cheiro do mijo, o gato no telhado, todos seus ornamentos de cidade, o gari, a guirlanda, o semáforo amarelo piscando - são os desafios dessa nova cidade.
Mas se essa cidade que conheci era toda pintada, será que essa pintura guerreira queria nos dizer algo a mais do que sua linda beleza? Aquelas faixas, que adornavam os contornos dos chãos. São faixas que servem apenas como faixas deitadas ao chão. Ou sabe-se lá qual foi a intenção da primeira das faixas que ali deitou, e que logo em seguida muitas outras seguiram o exemplo, eram faixas claras que gritavam ali deitadas, mas o homem insensível, (outra característica da cidade), passava por cima com seus instrumentos imensos pesados carros, manchando ou machucando com seu pneu preto suas listras claras. As faixas deviam representar algo próximo da paz, da redenção, da proteção, que decerto os caminhantes usariam como tábuas de passar rios, ou onde muitas crianças pulavam^de^pé^em^pé, e se puseram a morrer todas devido a machucadura dos carros que ali também queriam passar...daí que aquelas faixas nas ruas são finas tumbas de significado e(...)

Hoje me pus na frente de um grupo dessas listras, conforme o esquema abaixo

# || || || || || || || ||
E || || || || || || || ||
U || || || || || || || ||
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e de súbito os carros todos deixaram de cumprir sua função de atravessadores glóbulos brancos, vermelhos, prateados das artérias de cidade, e puseram-se a observar como eu esse versátil grupo listrado que ali jazia - parecia tão alvo, revitalizado - daí que senti algo de ancestral naquele gesto, como se aquelas zebras-de-chão fossem antigamente como elos encantados que levariam de um lado a outro da calçada, donde qualquer ser que nelas pisassem seria carregado até a outra margem daquilo que somos nós mesmos, mas que a cidade acabou tomando conta.

Mas acabei foi atravessando, com a sensação de que algum momento vou precisar atravessar aquele grupamento listrado na direção contrária, ou do contrário seguirei indo, indo, indo, e a cidade tem seus limites de cidade! Os carros que pararam para o meu atravessamento logo depois seguiram seus rumos, uns à esquerda, outros reto, quase todos de acordo com o que estava escrito nos cantos de como a cidade deveria ser. Segui meu rumo - que é o único que me cabe, e eles seguiram os muitos rumos deles, passarinhos, boeiros, e as cidades todas seguem com seus traquejos típicos de cidades que são. Grande abraço.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A antiga casa nova

A casa nova não tem pia na cozinha, ainda. Tem um fogão muito bonito. Pelo menos eu espero que ele fique muito bonito depois de limpo. Não tem nem gás, aliás. A casa nova não tem cortina, mas tem um janelão com vista pra pracinha. É bom olhar a pracinha às vezes. Mas não sempre. A pracinha enjoa a vista. Odeio a pracinha às vezes. Só às vezes.
O banheiro da casa nova está impecável. Um tapetinho azul marinho torto na entrada dá as boas vindas. Só falta o xampu. Sabonete, tem sim senhor, ou senhora. Um sabonete Dove Esfoliante. Chique, embora eu não saiba pra que serve um sabonete esfoliante. Que serve pra esfoliar eu sei, cáspeta, mas pra que serve essa esfoliação toda é que eu não faço a mínima. O vaso nunca deu problema, é bem quentinho e tem vista para a pia bege. A pia bege é mais enjoativa do que a pracinha. Fosse uma pia amarela e a minha vida seria mais engraçada.
A casa nova repete todas as palavras que digo. A falta de móveis me brinda com um eco insistente e chato como eu. Um eco que por vezes me irrita mais do que a pracinha, do que a pia bege, do que a minha mãe. A geladeira não gela, só esfria. Comprei umas Skols pra brindar o novo lar. Minha previsão é que elas (as Skol, Skols, ou Skóis?) gelem até o dia do meu aniversário (o próximo, de preferência). Na área de serviço, uma samambaia triste. E feia. E murcha. E desagradável. Odeio a samambaia triste feia murcha e desagradável.
O piso todo da casa é frio. Minto. O piso do quarto é de madeira. Acho importante esse detalhe, pois não gosto de andar de pantufas no quarto. O piso mais frio é o da sala, por um motivo muito simples: a sala é mais fria. A sala tem um sofá cheio de pêlos frios de cachorro. A sala é cheia de tomadas frias. As retangulares são 220 e as redondas são 110. Eu tenho uma extensão branca que serve pra ligar o rádio na sala fria e ouvir no banheiro quente. Olhando pra pia bege, nem tudo é perfeito.
Falta alguma coisa na casa nova. Falta alguma coisa além da pia na cozinha, do gás, da cortina, do xampu, dos móveis, da geladeira que gela.
Falta alguém que não seja triste, feia, murcha e desagradável como a samambaia. Que limpe o fogão bonito, que arrume o tapetinho do banheiro, que reclame a falta do condicionador para cabelos normais com ceramidas light, que traga um saco de dormir de casal e não repare a ausência de uma cama no que era pra ser um quarto, que sente no sofá e fique com a calça cheia de pêlos, que erre a tomada e queime o liquidificador. Que não seja feminista. Nem comunista. Nem ariana. E que não me culpe por ser naturalmente infiel.
A casa nova não tem pia na cozinha, ainda. E Skol é invariável. Uma Skol, Duas Skol, Três Skol.

Crônica

Fugi da casa dela e pulei a janela
Corri na viela atravessei passarela
E fui parar, eu fui
na Avenida Ceará
Da Boca do Monte, perto do Ermo, passando a montanha
Dobrando a esquina, pacote de bala e de naftalina
O ponta direita driblando o cachorro na boca do morro
Eu pedindo socorro pro dono do bar, pra moça da venda
Que vem me ajudar a me levantar, cuidado o declive
A pista tá livre, deu sorte essa vez, já morreram três
A perna tá bamba, cabeça doendo, joelho ralado, coração partido
Eu todo enrolado, mulher sem marido, mas domingo é hoje e tem futebol

terça-feira, 28 de abril de 2009

Profissões: contador

Se os antropólogos são aqueles que vão a um estádio de futebol e escrevem gigantes relatórios
E os filósofos são aqueles que inventam sempre uma nova palavra quando querem inventar alguma idéia nova em forma de palavra
Se os juristas decidem se o errado é certo ou errado
E os professores são aqueles que aprenderam a ensinar conforme os ensinaram a ensinar
Se os artistas são aqueles que vêem brilho no distante de seus olhos

Que resta dos contadores
Que apenas
Contam?

Mas antropólogos também completam complexas planilhas entre ameríndios
Filósofos saem com suas redes de caçar antigas borboletas às ruas
Juristas preenchem cruzadinhas em branco, com canetas esferográficas recarregáveis
Professores seguem ensinando a partir de exemplos alguns exemplos a mais
E os artistas programam batidas eletrônicas

Mas os contadores
Apenas
Contam.

Antropólogos sujam as botas, mas ainda têm uma mesa limpa e um escritório
Juristas já não usam perucas ornamentadas, mas às vezes tateiam a cabeça em busca dos bobes e rabos-de-cavalo
Professores desceram dos palanques, mas usam seus saltos-plataforma
E os artistas até já ganham dinheiro com publicidade.

Contadores
Apenas
Contam.


Os versadores versam
Os obstetras desobstruem
Os produtores produzem
Produtos por eles produzidos

Os violeiros rasqueiam
Os cantadores cantam
Outros na capela
de joelho
rezam...

Mas os contadores
Meu irmão
A essa altura
A toda hora
Os contadores somente
Contam!

Contam o tempo que falta pras seis e quinze
Quando pegam seus casacos
Engarrafam-se nas ruas
Passam na padaria
Pagam o fiado
Em casa o fígado já está temperado
E as crianças todas chorando

As contas se dependuram na geladeira
O conjuge reclama reclames antigos
O telefone toca
A barriga dói
A pastilha já não abranda a dor
A comida toda tem gosto de fígado!
O fígado tem gosto de plástico!
As crianças não se parecem em nada com o pai!
E o pão
Caralho!
Era velho!
As crianças
As mulheres
Os problemas!
As contas!
Que se fodam!

Contadores apenas contam.
Nada mais.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Títulos, Nomes e Coisas

Tinha um amigo que se intitulava Poeta. Gostava do amigo, apesar de ele se intitular Poeta. Como pode alguém se intitular poeta? mas o Poeta se dizia, - sou poeta!

ou

- Muito prazer, sou Poeta.

O que faz de alguém poeta? O Poeta era poeta e pronto. Alguém decerto batizara ele assim, ou nalgum dia alguém o chamou

- Poeta!

Ou então foi assim, de mansinho, de repente todos já lhe chamavam Poeta, inclusive ele mesmo, o Poeta.

Foram os dois, o Amigo e o Poeta, tomar um daqueles cafés. Não há no mundo lugar melhor para um Poeta e um Amigo: um Café ou um Bar ou um Boteco. O que distingue o Café do Bar e do Boteco é o tipo de Amigo e de Poeta que freqüenta esse lugar. Mas em qualquer lugar desses, o Bar, o Café, o Boteco, lá você vai encontrar Amigos e Poetas que se intitulam poetas.

Foram os dois, o Amigo e o Poeta, cada um pediu um café que lhe aprouvesse. Essa palavra soou estranho, aprouvesse, parece uma palavra que não significa nada. Uma palavra que se autointitula - Meu nome é Aprouvesse.

O Amigo e o Poeta pediram cada um o café que lhes Aprouvesse. Logo chegou um outro rapaz - quem seria? Deveria ser alguém, ou não estaria frequentando aquele Café ou Bar ou Boteco. O Amigo, na qualidade de amigo, ofereceu um banco para esse rapaz, e perguntou:

- Quem és tu?

Esse rapaz se intitulava Professor. "Sou Professor". A coisa começava a ficar interessante. O Amigo e o Poeta se admiraram de estarem ali com o Professor. Teria ele profecias pra professar? Teria ele muitos alunos, seria ele uma espécie de lâmpada, alguém que clareasse as idéias, cegasse as idéias, clareasse as idéias: um típico professor?

Mas que besteira! Ele era o Professor e ponto! Não precisava professorar nada pra ser o Professor, aliás, desde que começamos, quantas poesias escreveu o Poeta? Nenhuma. Quantas novas amizades fez o Amigo? agora, timidamente, quem sabe uma. Pronto, assim as coisas funcionam, são e não são.

- Sou Professor, com muito orgulho/

Sim, pra se intitular Professor, tem-se que ter muito orgulho. Sabemos de largada que o Professor tinha um grande ego, e um salário mediano.

- /tenho muitos alunos, alguns bons, outros apenas alunos. E é isso e somente isso que me faz Professor.

- Então o que acontecerá, Professor, quando não mais tiver alunos? Mudará você de você?

Pela qualidade da pergunta supomos que foi feita pelo Poeta, que até então estava calado, como é tipico ao Poeta típico.

O Professor encheu-se de águas nos olhos. Quando não mais houvesse alunos, seria apenas alguém que se intitula Professor. Mais ou menos como era agora ali no Café. Não havia aluno. E havia alguém que se intitulava Professor. Professor de quê?

A mesa do Boteco estava gelada. O Poeta estava escrevendo num guardanapo, como fazendo jus ao seu nome de Poeta. Escrevia, riscava, escrevia, riscava. Típico. O Professor tentava ensinar alguma coisa a si mesmo, comer de palitinhos, remover manchas de café da toalha xadrez, e pra tudo dava-lhe alguma nota, ou quando o assunto era polêmico, dava algum conceito correspondido por letras do alfabeto ou estrelinhas. Se achasse por ali outro que se intitulasse Professor, certamente proporia um Conselho de Classe. O Amigo fazia de tudo pra que ninguém brigasse ou se desentendesse, sem perceber que brigar e se desentender também era parte da construção da amizade e da própria amizade. Em si.

Tudo ia lindo, até que entrou no Bar uma mulher. Diria facilmente seu nome, caso perguntassem

- Cristina!

mas como ninguém perguntou, não passava de uma mulher. Nem chegou a dizer

- Sou Mulher!

e nem era necessário. Embora de roupas que cobrissem boa parte de seus genitais, embora os peitos não fossem muito avantajados, embora o cabelo fosse razoavelmente curto, embora as feições fossem triangulares, estava claro que se tratava de uma Mulher.

O Amigo, amigo que era, estendeu-lhe a última cadeira vaga

- Junte-se a nós, Mulher. Vou lhe pedir um expresso com xantily.

Mas não tinha segundas intenções com a Mulher, embora a achasse atraente. Afinal de contas, era o Amigo, não o Amante, nem o Namorado, nem o Conquistador. Era Amigo e ponto. Deu dois beijinhos, um em cada bochecha macia da mulher, como faz o amigo que se preze.

Já o Professor tinha lá suas taras, como todo professor, e devia ter muitas coisas pra ensinar àquela Mulher, muitas datas, fórmulas, dicas, citações, idiomas, mas pra sermos aqui bem sinceros, não tinha lá muito jeito com isso. Ficou com uma coloração diferente nas bochechas, os óculos meio embaçados, sentiu que precisava naquele momento ele mesmo de um Professor, um professor que não fosse ele, Outro Professor, um que lhe ensinasse como proceder com a Mulher. Alguém que o ensinasse como ensinar aquela mulher, de modo que virasse Homem sem perder o título de Professor, de modo que pudesse aprender ensinando, (eis o blefe de todo o professor), o de aprender sem virar aluno, mas isso é impossível, impossível. E o Professor ficou ali impassível. Ensinando-se alguns nervosos truques de auto controle. Ensinando-se a enganar-se a si mesmo. Mas acabou que não aprendeu nada. Era mesmo um Professor. Ensinava, e pronto. Ensinava o que não sabia. Ensinava o que já estava pronto. Um típico Professor. Com seu ego cabeludo de Professor, intitulando-se Professor quando já não havia mais o que se ensinar, pra quem ensinar, pra que ensinar.

O Poeta por sua vez pôs-se a escrever inúmeros poemas. Um meio tropicalista que falava da Mulher em sua essência.

Mulher
De traços geométricos
De toques policarpios
De flaunas vis
Mulher
Que toques meu verso
Com o tenro toque plúmeo
De teus peitos trêmulos e jactosos
Nos umbrais de meu universo
Poeta que sou
Nos une
O verso

Acabou descartando-o como é de praxe a todo Poeta.

Escreveu outros, outros e outros, enfim tinha descoberto-se, não há Poeta nem poesia sem a musa, a Mulher que inspira seus rabiscos em letras romanas tortas, em guardanapos daqueles que espalhariam a gordura nos beiços do Gordo, guardanapos que esperariam pela obra definitiva, que o tornaria além de Poeta, Gênio, mas naquele momento derradeiro certamente a tinta da caneta quebraria, ou a ponta do lápis, secaria, secaria a memória do Poeta, tremeria, aí um Amigo chegaria num momento inoportuno de amigo, com seu abraço de amigo, conversaria sobre o clima: e a poesia devinitiva, que tornaria o Poeta mais Poeta, a obra do Gênio, tudo perderia-se no labirinto confuso da cabeça confusa do Poeta e dos assuntos amenos do amigo.

Cogitou suicidar-se: nunca teria a Mulher. Pra sempre seria um Poeta, trágico Poeta, pensando na Mulher, escrevendo, riscando, rasgando e apagando, e a Mulher continuaria apenas Mulher e não Sua Mulher, Minha Mulher, isso só nos seus poemas, afinal, o Poeta era ele!

Daí em diante, o que deveria inspirar, transpirava pelo Poeta, que já não sabia mais escrever, mas só pensar na bela exótica Mulher. Já o Professor bloqueava todas informações que lhe entrassem pelos olhos ouvidos boca narinas e orelhas, afinal era um Professor, e aí residia a única chance da Mulher se interessar por ele, jamais se interessaria por um reles aluno!, e ele afinal era um Professor, e se aquele lugar ali fosse um Café, deveria ser um respeitado Professor, Respeitavel Professor do Café, devia ser seu nome completo,

- Por favor, chame-me apenas "Respeitável", diria amávelmente.

Como era humilde aquele professor! Mas cá pra nós, aquilo não era um Café, era um Boteco, daí que ele deveria ser um Fanfarrão Professor, Fanfarrão Professor Vadio do Boteco, conforme a identidade,

- Por favor, chame-me apenas "Professor", diria, e seria o rei daquele Boteco ou Bar!


Já o Amigo estava contente, arranjara dois novos amigos naquela tarde, era mais Amigo do que nunca, estava feliz.

Mas logo o Poeta e o Professor perceberam que a Desejada Mulher jogava ao Amigo um sorriso que não era de amizade. Saberia ela que aquele se tratava do Amigo? Não era o Amante! Não era o Namorado! Não era o Encantamento! O Amigo sorria inocentemente para a Mulher, que lhe mostrava um sorriso cheirando indecências! Sim, era uma Mulher, afinal! Deveriam ter eles desconfiado! Eram Poetas, Professores, não Asnos!

O Poeta, enciumado, num gesto nada-poético pulou na garganta do Amigo, sufocando-o até a quase-vida. O Amigo, amigo que era, quase não esboçava reação. Tentava defender-se, só um pouco, de modo a não entristecer ou contrariar o Poeta, que ainda era seu amigo. Tentava defender-se. Só um pouco. De modo a não entristecer ou contrariar o Poeta. Que ainda era seu amigo?

- Não sou Poeta, nunca fui Poeta, nunca, nunca Fui!!! Sou uma Farsa! Uma Farsa! Igual a você! Tu nunca foste Amigo de verdade, é também uma Farsa! Um Amigo-Farsa!

Aquelas palavras machucaram o Amigo-Farsa. E nervoso, o Poeta-Farsa saiu daquele café, sem pagar a conta, levando consigo os setenta e seis guardanapos com aquela poesia desesperada de ex-poeta. (Dali, o Poeta-Farsa iria a uma editora, que publicaria aqueles rabiscos desesperados, com quebras de linha que dessem a entender se tratar de poesia, uma revisão pra ficar de acordo com a nova ortografia, e daí o Poeta-Farsa ficaria rico, muito rico. E passaria a ser chamado apenas Gênio, finalmente!)

O Amigo-Farsa, por sua vez, apressou-se em matar-se: Apesar da agradável companhia da Mulher e do Professor naquela tarde arejada de abril, naquele lugar fresco, ameno, com fumaças doces de cigarro percorrendo os narizes, não, o Amigo-Farsa não conseguiu encarar esse dilema que a vida lhe aprontava: Como poderia ser Amigo e Farsa ao mesmo tempo? Amigo e Inimigo? Como poderia ser e não ser? Os mortos, todos sabem, são amigos de verdade. Como os cães vivos. A quem se pode confiar segredos, como seria de se esperar de um cão vivo. Mas ele já não era Amigo, nem Inimigo, nem Amante, nem Pretendido; Já não era sequer uma Farsa: era um amontoado de carnes fedidas que se jogaram de um sexto andar qualquer. A perna esquerda ainda mexia um pouco, autônoma. De susto.


O Professor-Farsa se desesperou, a princípio. Pôs-se a correr, e assim ficou correndo, correndo, correndo, correndo, só parou quando passaram a chamar-lhe Atleta. Dos rótulos estava cansado.

Mataria-se dias depois, enforcado. Deveria ter curiosidade em saber como é a vida depois que se morre. Coisa que nenhum professor sabia de verdade, embora alguns até isso ensinem! Quando descobriu o Zero, viu que não tinha mais volta. Nem desvios. E daí nada mais aprendeu, ensinou. Nada Mais. Passaram então a chamá-lo Louco, mas seu ouvido de morto já não se preocupava com esse status que sobrevivera...

A Mulher... bom sei que seu nome era Cristina, e que era mulher. E que os versos que o Poeta-Farsa lhe escreveu nunca chegaram aos seus ouvidos de mulher. E que achou o café forte e o xantily muito doce. E que, distraída, não notou a confusão que se abatera no Café aquele dia. E que, distraída, não notou a confusão que se abatera no Bar que se dizia Café e que todos chamavam Boteco. E que distraída não viu seres brigando, encabulando, sumindo, se jogando de sacadas quaisquer. Lembrava que sentou numa mesa com três indivíduos: o Chato, o Prepotente e o Tímido, mas não sabia bem qual era qual. E que daí o mundo continuou acontecendo. Que se chamava Cristina até o momento que chegou no bar/boteco/café. Mas que esqueceu lá sua identidade.


...achei-a dias depois, o plástico já se descolando. Dizia o nome completo de Cristina. Tinha uma foto 3x4 do tempo em que Cristina tinha os cabelos compridos. Dizia o nome da mãe mas não o do pai de Cristina. Tinha uma assinatura trêmula escrita: Cristina. E um imenso polegar, que deveria ser o polegar de Cristina.

(Seria eu
Cristina?)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Passeando no Mundo

Pensei em ir prum lugar qualquer onde tigres ou coalas
Pêras ou cajús
Oceanos ou mato ou areia
Ou nada

Mas um lugar que tivesse você no meu braço
(carinhada)

Pode ser aqui ou lá, ou fugir, ou voltar, ou ficar, divagar.

Mas aí decidimos por
a) pular
b) passear
c) cafunear
d) brincar
e cantar.

O mundo é hoje
, agora é o mundo

Que importa o chão que se faz por baixo
Se a um palmo de tudo a gente flutua?

Mini-Ensaios II: "Escola" e "Forma"

Escola

Minha língua é rica
de sons bonitos e invenções
Embora na escola os tesoureiros/professores
rapem raso os pretensos pequenos artistas
incultos e barulhentos pequenos adultos
desalumiados!

Forma

Compus dois sonetos
Um de amor outro de bicho
Dos dois o que mais gostei
Foi que não sairam em nada
Do jeitin' que imaginei

(mas o de bicho ficou bonito
- guardei)

domingo, 5 de abril de 2009

Mini-Ensaios: "Ritmo" e "Improvisação"

Sobre o Ritmo

são vários os ritmos da poesia
o ritmo de quem pensa
o ritmo de quem depois escreve
o ritmo de quem lê
(há ritmo no intacto do papel?)

daí que deve haver algum cálculo
entre esses fatores todos
que determine o Ritmo Final
paralelo aos batimentos
do coração
do relogio
(do pulso)

deve haver
mas não calculo.
não vou.
não quero.


Sobre a Improvisação

tantos poetas frouxos
da nossa academia
liam, liam, reliam, reliam
seus poeminhas cheios de xiliques
sem conseguir chegar
- perto
do lirismo que chegava
embolado num côco-de-oitava
um analfabeto bem brasileiro
que ao mesmo tempo em que improvisava
tocava bonito um pandeiro
e ainda por cima, sorria

tocava, cantava, sorria!

(4/4/9)

Mini-Ensaios: "Ritmo" e "Improvisação"

Sobre o Ritmo

são vários os ritmos da poesia
o ritmo de quem pensa
o ritmo de quem depois escreve
o ritmo de quem lê
(há ritmo no intacto do papel?)

daí que deve haver algum cálculo
entre esses fatores todos
que determine o Ritmo Final
paralelo aos batimentos
do coração
do relogio
(do pulso)

deve haver
mas não calculo.
não vou.
não quero.


Sobre a Improvisação

tantos poetas frouxos
da nossa academia
liam, liam, reliam, reliam
seus poeminhas cheios de xiliques
sem conseguir chegar
- perto
do lirismo que chegava
embolado num côco-de-oitava
um analfabeto bem brasileiro
que ao mesmo tempo em que improvisava
tocava bonito um pandeiro
e ainda por cima, sorria

tocava, cantava, sorria!

(4/4/9)

sexta-feira, 3 de abril de 2009

haikais mudernos

Companheiras

noite-pinga
estrela-passa



Ilegal

da manga rosa
quero: o gozo
e o fumo


Classificação

beijo japonês
olhos:
quase-fechados


Estratégia

saudade bate
não defendo
não ataco

Instrução

foxtrot
mambo
não se dança conforme danço!


Margarida

margarida é flor querida
arranco
quando bem-querer

Resignado

hai-kai balão
hai-kai balão
sem i-ma-gi-na-ção

Fantastrosa Fantastrosia Celeste

se os Astros estão conspirando
o que se dirá dos obscuros?
estariam Coadjuvando, tenebrosos?

e as Estrelas, cadentes
enquanto erguem-se em postes de luz?
dublês de grandes pescoços metálicos
empostes de luzes
e grandes pescoços
Meta
Licos!

e se a moça é de Lua
estaria cheia
ou minguando?
ou cheia
ou minguando
de novo!
de nova!

A senhora que constela sozinha
espetaria seus netos
sem-querer
com a ponta da frágil costela sã
e imaginando seus choros doídos
olharia saudosa pra qualquer rua
e imaginando as margens dos dias
carne nua
de estrias:

cobria com os murchos peitos
a vergonha dessas noites frias?

se as almas estão respirando
conspiram
e enquanto conspiram
aspiram

por entre o fedor das rosas
há um sutil aroma dos sustos vindouros.









Crítica:
Trata-se do primeiro poema bucólico que Cafifo fez e diz que não fez.

segunda-feira, 23 de março de 2009

A cidade e a ilusão 1

Não sei como começar a descrever a cidade de Portuálira, talvez como uma cidade mágica, onde estão as coisas mais bonitas, pelo menos pra quem mora por lá. Quem vem de fora escuta que Portuálira é a cidade mais desenvolvida da região, embora mendigos com grandes cabeleiras peçam esmolas em cada esquina úmida da cidade. Ouve falar também do clima ameno e temperado na cidade, embora os que cheguem nela desconfiem levemente que o verão é muito quente e o inverno é muito frio, que o outono é muito inconstante e a primavera, xôxa. Mas isso não passa de desconfiança do estrangeiro, pois logo um orgulhoso nativo o convence do contrário, vangloriando-se de andar em mangas de camisa em pleno julho boreal.

Suas praias são simpáticas, embora banhadas por um tosco e sujo lago, lago esse a que todos chamam rio, rio esse que todos imaginam mar, e chegam mesmo a sentir o gosto do sal na boca, mesmo sem jamais banhar-se em suas águas, pois são impróprias pra tal. Seus habitantes orgulham-se de seus antepassados com nome de rua, e todos seus escritores são grandes gênios, inclusive os gênios de fato. Seu povo é o mais culto, indiscutivelmente, e vai ao teatro, cinema, shows de música - de preferência vindos de fora (sim, são um povo muito orgulhoso mas ao mesmo tempo muito hospitaleiro, ora vejam só!) - e tudo isso desde que sobre um bom dinheiro pra cerveja. Inclusive, a melhor cerveja é produzida por lá, e não é vendida em nenhum outro ponto do planeta, talvez por questão de tradição. É a única cidade a ter o pôr-do-sol patenteado, e daí deve vir grande parte de sua renda, em direitos autorais e royalties, que é destinada em grande parte ao lirismo publicitário de engrandecer seus atributos todos.

Receio também que te interesses por saber das mulheres! Ah, as mulheres, essas sim, vi com meus próprios olhos, não se encontram tão bonitas em nenhum lugar do mundo. Lá o projeto da miscigenação foi cuidadosamente elaborado para que a melhor característica de cada raça fosse misturada de modo a produzir a melhor espécie, com supervisão de garbosos especialistas: um bocado de dedicação oriental, higiene indígena, a fogosidadea africana, mas sem, de jeito algum, terem a tez lá muito parda ou os cabelos muito encaracolados, pelo menos não a maioria - ou as que dão a aquela localidade tal fama.

Devo confessar-te que eu próprio conheci uma linda e encantadora mulher em uma de suas imensas ruas, e com todo respeito a vós, soberano, fiquei tentado em me estabelecer de fato nessa cidade de ilusões. Vós me entenderieis: a mulher era a mais linda e inteligente de Portuálira, representava todas as qualidades que vos descrevi acerca do lugar, com um adendo muito importante: não nascera em Portuálira, nem sequer perto!

Daí que essa moça representava o que de melhor havia por lá - o deslumbre e o ilusório que vem de fora - e fez abrir meus olhos para a real feiúra daquela metrópole pretensiosa, com seu sotaque carregado, suas filas, seus engarrafamentos provincianos, a teimosia dos seus velhos, a sua poluição controlada, e toda fantasia em que vive imerso seu povo.

Então pude admirar de verdade a tosquice daquele lugar e a vontade que passou a imperar em mim: a de amar incondicionalmente suas ruas, lombas e contrastes e ao mesmo tempo ter sempre registrada em mim a fixa idéia de fugir e só voltar quando toda a fama e ilusão acerca de Portuálira voltasse a fazer sentido nos meus olhos de estrangeiro nativo.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Kassandra (take 2)

A primeira vez que K. me disse eu te amo estávamos na cama. Eu por cima dela, dentro, o queixo roçando seu pescoço. Aí ela disse, quase sem forças:

- Eu te amo!

, e seguimos um por cima do outro, as barrigas suadas e os gemidos sussurrados.
A impressão que aquele verbo causou não tem nome ou objeto, estava confundida na carne, nas mãos e nos cheiros. Frente à carne, às mãos e cheiros, seria só um eu te amo qualquer, um som como tantos outros que emitimos, um ruído. Mas era o primeiro: era a primeira vez que K. me dizia eu te amo. E estávamos ali, sem roupa, feito animais que somos, e nem sequer olhávamos um nos olhos do outro. Daí rapidamente percebi do vício que temos no olhar e na palavra. Acreditamos no olhar e na palavra, e em casos como esse, os dois juntos se fazem cúmplices.

- Eu te amo!, diria K. me olhando nos olhos, ambos vestidos, de repente, num jantar romântico a luz de velas.

Mas não! No exato momento em que K. me disse - eu te amo!, eu tendia a esfregar meu nariz em seus peitos, com raiva da sua constante beleza. Raciocinava eu como um cachorro raciocina e ela me dizendo coisas como que por instinto: - eu te amo! Forçaria os braços sobre suas coxas - e acho que até o fiz - arranharia lentamente até a altura dos joelhos, aí já com medo dela dizer eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo, e me olhar nos olhos, como num jantar romântico! A luz de velas! Mas não, eu não arranhei suas coxas até a altura dos joelhos e ela não me disse eu te amo nenhuma outra vez naquele mês.

Conto agora essa história de maneira pretensamente linear, mas não foi assim que se sucedeu. Ou foi, na linearidade amarrotada característica da nossa existência. Fui realmente sentir o peso da declaração de K. - eu te amo!, depois, com ela repousando sobre meu peito.

- Você falou "eu te amo"! - perguntei em silêncio.
Ela nada respondeu ou acrescentou, estava ocupada acariciando em círculos o meu bigode.

Fiquei aí entre o medo e a surpresa (perplexo?) com aquela declaração corporal, um eu te amo dito com a carne, a cabeça desligada, os olhos quase fechados. Um eu te amo suspirado.

Pensei na hora que seria mais adequado se dizer uma coisa dessas num jantar a luz de velas. Aí fala:
- Eu te amo!
, com um olhar suplicante.

Aí proponho um brinde, e brindamos.

Ou: Espera um momento de silêncio, entre os goles de vinho (qualquer vinho) e fala:

- Eu te amo!

Mas aquele eu te amo suado entrou pelas minhas narinas, e mais parecia não pertencer ao momento. Um eu te amo estrangeiro, clandestino. Eu te amo impuro, sujo, mas fazer o quê?

Foi aquela justamente a primeira vez que K. me disse eu te amo.

*
Tempos depois K. me disse eu te amo novamente. Estávamos comendo (não lembro o quê), bebendo um vinho sul-africano, ou uruguaio?, nos olhando nos olhos.

No exato momento em que nos acabava o assunto, K. falou em voz pouca:

- Eu te amo!

Aquelas palavras nada significaram.

Propus então um brinde qualquer, mais tarde eu tinha que visitar minha mãe, que estava com febre e saudades.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

uma história singular.

essa história ocorreu de fato há cerca de uns anos atrás, quando uma moça (um pouco distraída) entrou-se no mar, e foi, entrando, canela-joelho-coxas (a água estava morna como café frio). A Moça tinha receio do mar, das águas tinhosas do mar, das correntes grudentas do mar. Da suspeita calmaria que às vezes se acometia do mar. Medo do mar em si, entende? Daí que todos estranhamos quando ela entrou-se no mar e foi entrando, canela - até quase o umbigo. Naquele ponto banhavam-se apenas alguns surfistas e uns adolescentes que ansiavam por quase morrer. E um turista japonês que falava um bocado de italiano. A Moça abriu os braços e jogou-se de costas numa onda flácida, sorrindo. Boiava como bóiam os bebês, com um sorriso deslumbrado de quem mal começou a pensar na vida, e nem sequer suspeita da sombra da morte. Ou coisa que o valha. A Moça deslizava pelas ondas ligeiras, cafuné nos cachos-de-mar. Em troca recebia no corpo sua corrente salgada donde se ouvia o ruído da respiração dos peixinhos mais diversos. Se olhasse em volta, veria a paisagem caminhando feito ciranda em volta do mar, morros, pedras, concreto, zinco, e a Moça se admiraria com tanta inocência. E beleza. Sentia-se grande, enorme, elefante. Os surfistas e adolescentes pareciam agora pequenos besouros. Esticou o olho e reparou que, lá de longe, não se via mais o Japonês. Talvez tenha voltado pra casa, talvez tenha se afogado silenciosamente, quem sabe. Quem sabe? Por um momento lhe importou saber do Japonês - onde estaria? Das suas aflições, quem cuidaria?

*

Preciso foi o momento em que deu-se conta que ali onde estava já não dava pé. Fazia tempo já a praia e os humanos minguavam ao longe. E sem pensar no regresso ou em não mais voltar ali ficou, de maneira singular, boiando agora como bóia um adulto assustado. Nadar nunca soube. Fôlego não teria, de qualquer maneira. A correnteza agora se percebia nítidamente, puxando a Moça pelos pés, braços e cadeiras. Num sentido que só fazia sentido aos que desvendassem as trilhas apagadas do mar.
Não era o seu caso.

De todos os lados havia água e horizonte. Sua mente perdia aos poucos a censura, imaginava-se sendo comida por monstruosos peixes de dentes tortos, e às vezes até sorria disso. Num dado momento pôs-se a nadar feito cachorro, porém assustou-se. Boiando sentia-se em casa. Não era hora de nadar prum lado ou pro outro, o momento não era de fazer escolhas. Fugir, pra onde? Boiava agora como bóia um ser resignado. Lembrou-se do Japonês com certa intimidade. Talvez já estivesse morto (como seria?), talvez estivesse também naquela situação, boiando, tirando retratos de horizonte-e-mar. Talvez estivesse vivo! Imaginou-se vívida nos braços frágeis do Japonês. Sua boca deveria ter gosto de susto (de quem já beijou a morte). (preferia, entretanto, imaginar-se num beijo cheirando tutti-fruti). Tutti-fruti! Soubesse que o japonês falava um pouco de italiano, riria com nostalgia. Mas não riu, nem nunca soube dos seus dotes lingüísticos.

*

Avistou de longe um navio pequenino. Não se espantou. Que espanto haveria num navio em pleno mar? Acenava de longe à suposta tripulação, mais por educação que por socorro. Precisamos entender os motivos da Moça: sentia-se em casa naquele caos tranqüilo da imensidão. E já até havia se acostumado a encarar o céu de frente. A natureza de mar e horizonte escurecia lentamente seu céu. Lentamente, como o desespero de um náufrago em águas tranqüilas. Lentamente, porém de modo certeiro, como é costume das águas e seu modo de agir. Na primeira noite sozinha em alto mar, nada aconteceu. Esse foi o acontecimento mais marcante da noite. As estrelas dali eram bem mais nítidas, a constelação do arqueiro fazia agora mais sentido, em duas ou três versões diferentes. Um punhado de três-marias e até um grupo de estrelas que sugeriam um lagarto estranho surgiam a cada momento. A água estava um pouco mais gelada, porém o dia ainda se manifestava: por trás do espelho da lua soprava um bafo quente do sol noturno. E foi isso. Nada de piratas, tartarugas, tubarões ou coisa do tipo. Nem medo. Tanto que a Moça, que tardava pegar no sono em sua cama fofa com travesseiros de pena-de-ganso, ali nos lençóis pretos do oceano dormiu feito anjo, embora com as asas molhadas.

*

No outro dia acordava como quem acorda de um sonho. Tateou em busca do despertador que não tocava, e procurando evitar o sol que batia pela imensa janela do céu, puxou um naco de lençol, que se desfez em seu rosto como água gelada. Abriu o olho de recém nascido, boiando com certa naturalidade, e digamos que sentiu uma sensação boa ao se redescobrir mar adentro. Havia sonhado com fogo, com ruídos de gente, e ali estava novamente imersa na calmaria que passou a vida procurando. Invejou-se. Chegou meio-dia nos relógios terrestres. Ali, roncou sua barriga. Lábios secos. A fome e a sede que sentiu mataram qualquer tipo de filosofia de momento. Daí que fome e sede também distraíram a Moça de qualquer outro terror que a natureza pudesse aprontar. E assim passaram-se os dias e as noites. Um casal de golfinhos se exibiu timidamente no terceiro ou quarto sol, uma leve febre marítima surgiu no sexto ou sétimo alvorecer e em seguida passou. Tapetes mágicos rasgaram o céu com seus barulhos dias depois. Mas aí a Moça já desconfiava de seus sentidos, embora ainda desse crédito aos seus desvairios com o tato. A barriga já não roncava havia um tempo, e a sede de água era tanta, mas tanta, que já não se sentia sede alguma. Só um gosto de sal na boca, e um constante perfume de coisas afogadas.

*

Naquele dia-mar sentia-se serena. Algo em seu corpo denunciava um descanso próximo, como faz o corpo em situações extremas: adivinha. Sabia que a paz era sintoma da morte, mas não se desesperou. Ainda havia alguma vida a ser vivida. Perdera os sentidos quase todos, e nem as confusas imagens de sonho pareciam teimar mais em sua cabeça. O tato estava embaralhado, e a água agora parecia areia quente. Ali já sentia dificuldade de respirar, e seu corpo parecia muito mais pesado. - Adeus!, tentou gritar, mas a voz não saiu, destreinada que estava. Quando o escuro dos olhos parecia ir em direção a um escuro definitivo, sentiu o que deveria ser o tão comentado beijo da morte, em pessoa. Vou descrever como a Moça ela própria descreveria: o beijo da morte era assustado, trêmulo, e talvez lembrasse mesmo o cheiro de tutti-fruti, mas com alguma imaginação envolvida. Um beijo-soprado, acompanhado de uma constante pressão nas costelas, engraçado!, como é reconfortante o sufoco da morte! Sentiu-se de repente no centro das atenções, como se observada por um barulhento grupo de zumbis. Estariam todos mortos também? Um lugar onde se vivem os que estão mortos? Sempre achou que morrer seria um puf, pronto, morreu-se! Agora tudo parecia um grande ritual asfixiante, uma grande torcida macabra. Já não sentia o corpo do mar, e pensou nisso com tristeza. Estava falando alguma coisa pra alguém. "Sim, sim, sim!", acho que era só o que dizia. Sentiu um translúcido gosto de água, da mais pura água que já havia provado, e agora saía abraçada com dois anjos vestidos de branco, com discretas asas. Quase viu o mar, e seus olhos teimavam em tentar ver a última praia, a que pôs os últimos pés antes de partir para sua singular viagem. Estivesse lúcida veria aquela paisagem parada feito tatuagem em volta das águas. Morros, pedras, concreto, zinco. E a Moça se admiraria com tanta inocência. E beleza. Na ambulância, sentiu o soro avivar suas veias e por um momento teve alucinações de gente viva. - É um milagre!, alguém falou.

Estava viva, embora talvez se demorasse um bocado a acostumar com a idéia.
Mas lhes confesso uma coisa, que muito me alegra. Não lhe sairia tão cedo da cabeça a vontade de reunir em um gesto todas suas forças e de novo correr para o braço gigante do mar. Jogar-se no destino de suas tinhosas correntezas, flutuar novamente no embalo de sua sorte, por trilhas apagadas que só ganham sentido conforme se trilhe algum sentido. É mais ou menos o que acontece com os caminhos: somente serão caminhos se caminhados.

(assim pensou singelamente a moça dias depois ao entrar-se novamente no mar. A água fria récem batia pelos joelhos, mas o coração já estava na mão, pulsando como fosse a última vez!)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

fogo no verso.

taco fogo na minha poesia
e das resinas termoplásticas
um cheiro de verso queimado
polui todo o ambiente
dum habitual enxofre

fosse um poema de lápis
passava a borracha
(muito embora as depressões resultantes da escrita
continuassem denunciando que havia decerto um poema
no braile que ficou escondido)

fosse escrito de computador
colocaria na lixeira
(inodora)
junto com retratos imaginados
programas desatualizados
e arquivos corrompidos

mas não, o poema era de guardanapo
e caneta azul
que não vingou

a árvore foi então desperdiçada
e no fogo da sua queimada
entraram tinta, suor e algodão
em transe com a atmosfera
do já poluido
ar de nossos dias

no fim o poeta caiu
com seu verbo em vão
pois não se faz verso, não
sem a necessária tristeza

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

olhando em volta.

a música em minha volta
fere os ouvidos
passa de mão em mão
é ponte
por cima de muro

mora no verso
na filosofia
e na memória

os gestos são reflexos, apenas
e a vida grandiosa corre
nesses pequenos movimentos
vívidos

em troca, sorriso
ou olhar de menina
sambando e mexendo as cadeiras

noite, os vultos, as ruas
os humanos
são outros!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O chaveiro.

Separou as ferramentas, grampos, chaves de fenda, luvas, máscara, chicletes, desengripantes, furadeiras, e partiu para o nº 28 da rua Almirante Peçanha, onde o esperava um rapaz de expressão neutra e constante meio-sorriso no rosto:

- Olá, perdi minha chave da caixinha de correspondência e não consigo...
- Sim...
Separou um grampo em forma de @ deu uma leve entortada na ponta e antes de prosseguir, perguntou:
- Apartamento 208 certo?
- Isso, essa caixinha aí de baixo.

A caixa de correspondência era das mais incômodas, rente ao chão, de modo que teve que ficar de cócoras, e ir baixando até achar o melhor jeito pra abri-la, numa postura intermediária entre o ajoelhar-se padrão e o deitar típico das sereias, de lado, com a cauda empinada.
Sentiu a primeira gota de suor atravessar o corpo inteiro, do meio das costas, até o cóccix, entrando pelo rêgo e perdendo-se nos cabelos do entrepúbis.

*

O movimento de arrombar conhecia muito bem, leves catucos, gira prum lado, catuca, gira prum lado, catuca, até a fechadura abrir-se.

Catuca, gira, catuca, gira

- Vai demorar muito?
- Não...(catuca, gira, catuca)...só mais um pouco...(catuca, gira, catuca)
- Pensei que seria mais fácil abrir uma simples caixinha de correspondência!
- É que não sei bem qual é o fabricante. Também não sei pra que lado abre, então tenho que tentar dos dois lados. O senhor consegue uma água por gentileza?
- Só um momento, busco uma água gelada no meu apartamento. Aproveito e já pego os R$20 reais do serviço. Não vai demorar muito não né?
- (grunhido).

*

Estava acostumado a abrir grandes portas sob tensão, destrinchava cadeados, e com um palito de fósforo e uma joaninha já abrira grades de ferro e baús de marfim. Agora parecia que havia desaprendido tudo! Uma porra duma caixinha de correspondência!

Catuca, gira, catuca...clll..clll estava a um passo do clique final quando uma sirene soou

- Puta que pariu, os tiras!, falou baixinho.

Sempre que estava arrombando uma fechadura, olhava pros lados, tenso, como reflexo da natureza esguia daquela profissão.

O carro da polícia parou, como cão farejando o medo.

Catuca, gira, catuca nervosamente...

Um policial gordo sai do carro, a mão rente à pistola na cintura.

- Tudo em ordem?
- Sim, seu policia, estou só trabalhando aqui, o morador foi buscar uma água gelada e já volta.

Suava como um suíno descontrolado sua.

Um soldado estranho salta do carro e se posiciona rente ao capô.

- Deve haver algum engano?, perguntou, assustado.

Os policiais se entreolharam, um pediu desculpas pelo incômodo, e outro desejou bom dia e foi comprar uma empada de bacon num postinho de conveniências.


*

Passado o susto, voltou ao trabalho, dessa vez com um grande martelo e uma chave de fenda.
Simples: num cléc! enfim abriu a caixinha, e fez todo o procedimento de troca de fechadura que todos conhecemos muito bem.
Agora era só esperar, pegar os vinte reais e ir pra casa. Esperou um pouco. Mais um pouco. E outro pouco.
Passaram-se cerca de 20 minutos, e nada do morador voltar com a água e com o dinheiro.
Apertava o 208 no interfone, nada.

Filho da puta!

Uma senhora de cabelos desbotados na cor rosa entrou rapidamente pela grade principal do prédio, assustada.

Deve ser a combinação macacão, chave de fenda e barba comprida, muito próxima do ideal de terrorista da sociedade contemporânea.

Com as mãos levantadas, abanando, gritou - Dona, estou trabalhando para o rapaz do 208, ele ficou de pegar uma ág...
A senhora andou rapidamente em direção ao hall do prédio, abriu às pressas a porta e lá dentro, após um grande suspiro, chaveou a porta duas vezes.


(Ao entrar em casa, discou 190.
- Tem um suspeito no pátio do meu prédio, arrombando as correspondências e ameaçando os moradores com um grande martelo!)

*

Como passavam infinitos cinco minutos e estava preso no patiozinho do prédio, desesperou-se. Não podia sair, pois a grade era alta, tinha fios elétricos de alta-tensão, e 3 fechaduras Bulldog, mais uma daquelas De Bolinhas, que precisava de um aparato extra - e muito tempo - pra arrombar.

Caminhou em direção ao hall do edifício, onde a situação era um pouco melhor: uma fechadura Barítono, simples, daquelas que arrombava no colegial. Olhou prum lado. Olhou pro outro. Pegou a chave em @. Abriu de primeira.

Entrou no elevador, vigésimo andar. 201, 206, 200, 207-b, 209, enfim 208.

Uma disco-music tocava freneticamente, repetindo o mantra
"shake your nipples!"
ou coisa que o valha.

Tocou na campainha, que tocava no estilo cigarra
- prrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrré
Nada.
Tocou de novo. Nada. De novo. Nada. De novo, nada. Denovonada!

Só quando havia separado a Chave Barrington e a Alavanca Mulligan e se preparava pra arrombar a porta silenciosamente, deu-se conta que um leve giro na maçaneta, no sentido anti-horário, já bastava pra abri-la, porta bonita feita de um material parecido com a imbuia, com frisos laterais e uma espécie de marchetaria.

*

Abriu a porta lentamente. Fez um ruído de criança manhosa. Nhéé!
"shake your nipples", agora o refrão parecia mais claro.
E uma meia-lua tocada frenéticamente parecia mais evidente no arranjo.
Vozes temperadas e um órgão hammond malandreado.
Quadros ecléticos na parede: Marvin Gaye, Fábio Assunção, um ser mitológico similar a uma Hércula,
e um pôster autografado de Larry Bird.

Mas ele não estava ali pra prestar atenção a esses detalhes. Estava com sede, queria os 20 reais e queria ir embora dali. - Hey!, gritou. - Alguém aí?
Abriu portas, gavetas, armários, a geladeira, [comeu um quitute, bebeu um suco de tangerina], debaixo da cama, espiou, já estava irritado quando avistou um tipo de portinhól, dando acesso ao que seria um quarto de duendes, se existissem esses tipos.

(a musica disco trava no shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-)

A portinha deveria estar trancada, mas isso alongaria demais o nosso causo.

Clim!

abriu a portinha, e só havia alguns sapatos velhos.

*

Estava indo embora contrariado, quando resolveu apoderar-se de um relógio que mais tarde deveria ser avaliado em 50 reais. Merecia, e não era bem um roubo, visto que tinha feito o serviço e havia sido vilipendiado em seu tempo. E o que eram 50 reais hoje em dia?

Lá fora ruídos de sirene de polícia. Eram duas viaturas fazendo guarda na frente do prédio, com mais duas vindo da zona sul e um helicóptero da divisão de narcoterrorismo sendo destacado do município de Graúnas diretamente para o local.

Saiu do apartamento sorrateiro, sem se aperceber do movimento externo. Quando chegava ao fim do corredor um senhor com aspecto de republicano abriu a porta de um dos apartamentos.

- Bom dia, posso ajudá-lo?

Devia ser o síndico. Ouviam-se latidos similares aos latidos de cachorro vindo de dentro de seu apartamento.

- Meu nome é () e estava consertando a caixinha de correspondência do apartamento 208, (*suspiro).
- Ah, o Luis Eduardo do 208 teve um pequeno problema, mas me deixou vinte reais para pagar-lhe...
Já não queria os 20 reais, queria ir embora, mas.. afinal eram vinte reais.
O velho prosseguiu:
- Entre por gentileza, lhe alcanço um cafezinho e lhe dou seu dinheiro.

Da cozinha tipo americana, ouvia-se furiosos latidos similares ao de cachorro, e um cheiro de lã de ovelha. O velho agora parecia mais translúcido, e quando ficava contra a luz era possível contar suas artérias e enxergar o vulto de muitos dos seus órgãos vitais.

Trouxe um café muito marrom, com uma nuvem estranhamente esverdeada, e um ovo frito mal passado em um pequeno pir.
O ovo frito acentuou o cheiro de travessa de carne mal lavada misturado ao de pêlos de ovelha que se sentia, e isso parece que aguçou os seres que latiam tal cachorro, de quem só se ouvia as vozes roucas.

- São seus cachorros?, perguntou, enquanto arranjava coragem pra beber o café.
- Beba o café, meu filho, já lhe alcanço os 20 reais.
- Mas os cachorros são seus?, perguntou, impaciente.
O velho saiu, contrariado, e disse. - São meus bebês, beba o café!
De longe, entrando em uma peça à direita ouviu-se de longe dizer:
- Não se esqueça de beber o café!

Jogou o café num vaso que abrigava um cactus silvestre garboso, apesar de sem flores, mas com espinhos graúdos e aparência saudável. Olhou para o ovo mal passado e sentiu vontade de comê-lo e de vomitar ao mesmo tempo. Levantou-se quando a vontade de vomitar sobressaiu-se.

Refez o caminho do velho, corredor, primeira à direita, pensou em chamar

- Senhor?

Mas como o cheiro de cérebro e a respiração dos cachorros aumentavam assustadoramente seu volume, resolveu por ficar quieto.

*

Chegou em uma bifurcação (esses apartamentos antigos são muito gozados), dessa vez em "X". Não sei se bifurcações em "X" chamam-se bifurcações. Mas era esse o quadro. Tinha várias opções, tal vestibular

a) em frente
b) dobrar à esquerda
c) dobrar à direita
d) voltar
e) sentar-se no chão, indiferente

marcou a letra "b", que dava num corredor com grafites datados da década de 60, com influências inacreditáveis de Andy Warhol e citações de Truman Capote ou um desses sujeitos excêntricos e andróginos. Nada de águias, brasões ou coisas de maçonaria, como seria de se esperar desses tipos republicanos.

No final do corredor, um bueiro, com vozes alucinantes vindas de dentro, e um bafo de tenebrosidade escapando pelas suas bordas metálicas.

Apavorado!, voltou correndo até a polifurcação em "X", dobrou à esquerda, donde repousava o ovo mal passado com um par de moscas verdes sobrevoando e um cactus ocre murcho com espinhos caídos ao lado.

Tentou sair mas a porta estava chaveada. Vultos cor-de-rosa e vozes monocórdias apareciam num susto. As vozes dos cachorros-besta cochichavam no seu ouvido e misturavam-se a barulhos de sirene e helicópteros sobrevoando e megafones raivosos. Pôs as mãos nos cabelos e, sem conseguir chorar de desespero, deu um grito de horror.

- GRITO DE HORROR!!!

Atirou-se pela janela.

(Tudo bem, estávamos no 20º andar, mas o chão de folhas fofas de outono certamente amorteceria uns 6 andares de queda. Nosso herói, caso não tivesse morrido nesse momento, ganharia tratamento médico gratuito, alimentação e estadia, tudo parte do pacote jurídico que teria direito após detido pela polícia e ser enquadrado por "terrorismo", "furto", "vandalismo", "vadiagem", "obnubilação de fatos" e "comportamento obtuso", esse decerto por portar 1,5 gramas de maconha no bolso, quando no momento da queda.)

FIM

*

O velho chega na cozinha trêmulo. Observa o ovo mal passado, o cactus murcho. A porta, intacta. De longe escuta as sirenes. Helicópteros. Bombeiros. Reforços. Se desespera. Pensa em fugir. Volta. Bate as mãos na parede. Pega o revólver. Guarda o revólver. Prepara um café marrom-e-verde. Não tem coragem de beber. Tenta tapar o nariz até parar a respiração por completo. Respira. Vai correndo. (corrida lenta de velho). Chega na quadrifurcação em "X". Dobra à esquerda. Abre o bueiro. Mal sente o horrendo cheiro de tripas com cabelo de ovelhas e gemidos de todas as cores.

Desce a escadinhola, e brada

- Vocês agora são livres meus bebês. Chegou a hora! Chegou a hora!

Dentro do porão escuro de chão batido, várias cadeiras como uma platéia, e no palco uma espécie de jaula gradeada, com uma horda de 40 poodles sangrentos com seus bafos nojentos, alguns comendo-se a si mesmo, outros sem as pernas dianteiras, outros com pedaços de orelha faltando, outros velhos com suas tranças compridas, já sem dentes chupando ossos humanóides. Dentro do celeiro, entre os poodles, o esqueleto que devia ser da Dona Rosa, a ossada de Paulo José, os restos daquele gordinho que habitava o apartamento 304, um pedaço do osso-do-pé que não se sabia bem a quem pertencia - não era muito bom em reconhecer esse tipo de ossada, e um tanto de outros ossos e múmias com cabelo, alguns poucos nacos de gato, javalis inteiros que comprava no período natalino, urros e jatos de merda de cachorro na parede.
e um cheiro de mijo que já nem se sentia mais.


Com uma grande chave antiga, o velho abriu o cativeiro dos cachorros famintos, sendo comido quase que imediatamente por todos os que ainda tinham os dentes, (alguns davam-lhe gengivadas), outros mais novos com seus dentinhos de leite, rasgavam a carne velha e transparente como piranhas-poodle, em poucos segundos, num grande velhicídio coletivo.

Agora todos cães estavam deitados a arrotar e palitar os dentes. A carne passada do dono os saciaria pelo menos até o começo da madrugada,

pra sorte do morador do 208, Luis Fernando,
que amarrado solitário numa das cadeiras disponíveis na bizarra seleta platéia,
apenas gemia baixinho,
boca vendada,
tentando decerto agradecer a Deus a oportunidade
de ter sido deixado pra ceia.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

breve ensaio sobre sinônimos

eterno
->deus ->homem ->morte ->paz
->sonho ->ilusão ->esperança ->espera
->paciência ->tolerância ->conivência ->apologia
->liderança ->poder ->dinheiro ->papel
->árvore ->pulmão ->ar ->poluição
->fumaça ->sujeira ->lixo ->reciclagem
retorno

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O chaveiro

Separou as ferramentas, grampos, chaves de fenda, luvas, máscara, chicletes, desengripantes, furadeiras, e partiu para o nº 28 da rua Almirante Peçanha, onde o esperava um rapaz de expressão neutra e constante meio-sorriso no rosto:

- Olá, perdi minha chave da caixinha de correspondência e não consigo...
- Sim...
Separou um grampo em forma de @ deu uma leve entortada na ponta e antes de prosseguir, perguntou:
- Apartamento 208 certo?
- Isso, essa caixinha aí de baixo.

A caixa de correspondência era das mais incômodas, rente ao chão, de modo que teve que ficar de cócoras, e ir baixando até achar o melhor jeito pra abri-la, numa postura intermediária entre o ajoelhar-se padrão e o deitar típico das sereias, de lado, com a cauda empinada.
Sentiu a primeira gota de suor atravessar o corpo inteiro, do meio das costas, até o cóccix, entrando pelo rêgo e perdendo-se nos cabelos do entrepúbis.

*

O movimento de arrombar conhecia muito bem, leves catucos, gira prum lado, catuca, gira prum lado, catuca, até a fechadura abrir-se.

Catuca, gira, catuca, gira

- Vai demorar muito?
- Não...(catuca, gira, catuca)...só mais um pouco...(catuca, gira, catuca)
- Pensei que seria mais fácil abrir uma simples caixinha de correspondência!
- É que não sei bem qual é o fabricante. Também não sei pra que lado abre, então tenho que tentar dos dois lados. O senhor consegue uma água por gentileza?
- Só um momento, busco uma água gelada no meu apartamento. Aproveito e já pego os R$20 reais do serviço. Não vai demorar muito não né?
- (grunhido).

*

Estava acostumado a abrir grandes portas sob tensão, destrinchava cadeados, e com um palito de fósforo e uma joaninha já abrira grades de ferro e baús de marfim. Agora parecia que havia desaprendido tudo! Uma porra duma caixinha de correspondência!

Catuca, gira, catuca...clll..clll estava a um passo do clique final quando uma sirene soou

- Puta que pariu, os tiras!, falou baixinho.

Sempre que estava arrombando uma fechadura, olhava pros lados, tenso, como reflexo da natureza esguia daquela profissão.

O carro da polícia parou, como cão farejando o medo.

Catuca, gira, catuca nervosamente...

Um policial gordo sai do carro, a mão rente à pistola na cintura.

- Tudo em ordem?
- Sim, seu policia, estou só trabalhando aqui, o morador foi buscar uma água gelada e já volta.

Suava como um suíno descontrolado sua.

Um soldado estranho salta do carro, tira a pistola do coldre e se posiciona rente ao capô.

- Deve haver algum engano!, ia falar, mas a polícia sempre, sabe-se lá por que, o deixava nervoso.

- Deve haver algum engano?, acabou falando, assustado.

Os policiais se entreolharam, um pediu desculpas pelo incômodo, e outro desejou bom dia e foi comprar uma empada de ricota num postinho de conveniências.


*

Passado o susto, voltou ao trabalho, dessa vez com um grande martelo e uma chave de fenda.
Simples: num cléc! enfim abriu a caixinha, e fez todo o procedimento de troca de fechadura que todos conhecemos muito bem.
Agora era só esperar, pegar os vinte reais e ir pra casa. Esperou um pouco. Mais um pouco. E outro pouco.
Passaram-se cerca de 20 minutos, e nada do morador voltar com a água e com o dinheiro.
Apertava o 208 no interfone, nada.

Filho da puta!

Uma senhora de cabelos desbotados na cor rosa entrou rapidamente pela grade principal do prédio, assustada.

Deve ser a combinação macacão, chave de fenda e barba comprida, muito próxima do ideal de terrorista da sociedade contemporânea.

Com as mãos levantadas, abanando, gritou - Dona, estou trabalhando para o rapaz do 208, ele ficou de pegar uma ág...
A senhora andou rapidamente em direção ao hall do prédio, abriu às pressas a porta e lá dentro, após um grande suspiro, chaveou a porta duas vezes.


(Ao entrar em casa, discou 190.
- Tem um suspeito no pátio do meu prédio, arrombando as correspondências e ameaçando os moradores com um grande martelo!)

*

Como passavam infinitos cinco minutos e estava preso no patiozinho do prédio, desesperou-se. Não podia sair, pois a grade era alta, tinha fios elétricos de alta-tensão, e 3 fechaduras Bulldog, mais uma daquelas De Bolinhas, que precisava de um aparato extra - e muito tempo - pra arrombar.

Caminhou em direção ao hall do edifício, onde a situação era um pouco melhor: uma fechadura Barítono, simples, daquelas que arrombava no colegial. Olhou prum lado. Olhou pro outro. Pegou a chave em @. Abriu de primeira.

Entrou no elevador, vigésimo andar. 201, 203, 205, 207, 209, nada de 208.
No fim, aquele corredor era parte de uma das bifurcações em "Y". Na outra deveriam estar os números pares.
bingo!

Isso afinal não era pra ser uma história de suspense ou de adivinhação:
202, 204, 206, 208!, pronto.

Uma disco-music tocava freneticamente, repetindo o mantra
"shake your nipples!"
ou coisa que o valha.

Tocou na campainha, que tocava no estilo cigarra
- prrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrré
Nada.
Tocou de novo. Nada. De novo. Nada. De novo, nada. Denovonada!

Só quando havia separado a Chave Barrington e a Alavanca Mulligan e se preparava pra arrombar a porta silenciosamente, deu-se conta que um leve giro na maçaneta, no sentido anti-horário, já bastava pra abri-la, porta bonita feita de um material parecido com a imbuia, com frisos laterais e uma espécie de marchetaria.

*

Abriu a porta lentamente. Fez um ruído de criança manhosa. Nhéé!
"shake your nipples", agora o refrão parecia mais claro.
E uma meia-lua tocada frenéticamente parecia mais evidente no arranjo.
Vozes temperadas e um órgão hammond malandreado.
Quadros ecléticos na parede: Marvin Gaye, Fábio Assunção, um ser mitológico similar a uma Hércula,
e um pôster autografado de Larry Bird.

Mas ele não estava ali pra prestar atenção a esses detalhes. Estava com sede, queria os R$20 reais e queria ir embora dali. - Hey!, gritou. - Alguém aí?
Abriu portas, gavetas, armários, a geladeira, [comeu um quitute, bebeu um suco de tangerina], debaixo da cama, espiou, já estava irritado quando avistou um tipo de portinhól, dando acesso ao que seria um quarto de duendes, se existissem esses tipos.

(a musica disco trava no shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-)

A portinha deveria estar trancada, mas isso alongaria demais o nosso causo.

Clim!

abriu a portinha, e só havia alguns sapatos velhos.

*

Estava indo embora contrariado, quando resolveu apoderar-se de um relógio que mais tarde deveria ser avaliado em 50 reais. Merecia, e não era bem um roubo, visto que tinha feito o serviço e havia sido vilipendiado em seu tempo. E o que eram 50 reais hoje em dia?

Lá fora ruídos de sirene de polícia. Eram duas viaturas fazendo guarda na frente do prédio, com mais duas vindo da zona sul e um helicóptero da divisão de narcoterrorismo sendo destacado do município de Graúnas diretamente para o local.

Saiu do apartamento sorrateiro, sem se aperceber do movimento externo. Quando chegava ao fim da nossa bifurcação em "Y" um senhor com aspecto de republicano abriu a porta de um dos apartamentos.

- Bom dia, posso ajudá-lo?

Devia ser o síndico. Ouviam-se latidos similares aos latidos de cachorro vindo de dentro de seu apartamento.

- Meu nome é () e estava consertando a caixinha de correspondência do apartamento 208, (*suspiro).
- Ah, o Luis Eduardo do 208 teve um pequeno problema, mas me deixou vinte reais para pagar-lhe...
Já não queria os 20 reais, queria ir embora, mas.. afinal eram vinte reais.
O velho prosseguiu:
- Entre por gentileza, lhe alcanço um cafezinho e lhe dou seu dinheiro.

Da cozinha tipo americana, ouvia-se furiosos latidos similares ao de cachorro, e um cheiro de lã de ovelha. O velho agora parecia mais translúcido, e quando ficava contra a luz era possível contar suas artérias e enxergar o vulto de muitos dos seus órgãos vitais.

Trouxe um café muito marrom, com uma nuvem estranhamente esverdeada, e um ovo frito mal passado em um pequeno pir.
O ovo frito acentuou o cheiro de travessa de carne mal lavada misturado ao de pêlos de ovelha que se sentia, e isso parece que aguçou os seres que latiam tal cachorro, de quem só se ouvia as vozes roucas.

- São seus cachorros?, perguntou, enquanto arranjava coragem pra beber o café.
- Beba o café, meu filho, já lhe alcanço os 20 reais.
- Mas os cachorros são seus?, perguntou, impaciente.
O velho saiu, contrariado, e disse. - São meus bebês, beba o café!
De longe, entrando em uma peça à direita ouviu-se de longe dizer:
- Não se esqueça de beber o café!

Jogou o café num vaso que abrigava um cactus silvestre garboso, apesar de sem flores, mas com espinhos graúdos. Olhou para o ovo mal passado e sentiu vontade de comê-lo e de vomitar ao mesmo tempo. Levantou-se quando a vontade de vomitar sobressaiu-se.

Refez o caminho do velho, corredor, primeira à direita, pensou em chamar

- Senhor?

Mas como o cheiro de cérebro e a respiração dos cachorros aumentavam assustadoramente seu volume, resolveu por ficar quieto.

*

Chegou em uma bifurcação (esses apartamentos antigos são muito gozados), dessa vez em "X". Não sei se bifurcações em "X" chamam-se bifurcações. Mas era esse o quadro. Tinha várias opções, tal vestibular

a) em frente
b) dobrar à esquerda
c) dobrar à direita
d) voltar
e) sentar-se no chão, indiferente

marcou a letra "b", que dava num corredor com grafites datados da década de 60, com influências inacreditáveis de Andy Warhol e citações de Truman Capote ou um desses sujeitos excêntricos e andróginos. Nada de águias, brasões ou coisas de maçonaria, como seria de se esperar desses tipos republicanos.

No final do corredor, um bueiro, com vozes alucinantes vindas de dentro, e um bafo de tenebrosidade escapando pelas suas bordas metálicas.

*

Apavorado, voltou correndo até a polifurcação em "X", dobrou à esquerda, donde repousava o ovo mal passado com um par de moscas verdes sobrevoando e um cactus murcho com espinhos caídos ao lado.
A porta estava trancada com uma conhecida combinação de fechaduras distintas, o que motivou nosso herói a saltar pela janela.

(Tudo bem, estávamos no 20º andar, mas o chão de folhas fofas de outono certamente amorteceria uns 6 andares de queda. Nosso herói, caso não tivesse morrido nesse momento, ganharia tratamento médico gratuito, alimentação e estadia, tudo parte do pacote jurídico que teria direito após detido pela polícia e ser enquadrado por "terrorismo", "furto", "vandalismo", "vadiagem", "obnubilação de fatos" e "comportamento obtuso", esse decerto por portar 1,5 gramas de maconha no bolso, quando no momento da queda.)

FIM

*

O velho chega na cozinha trêmulo. Observa o ovo mal passado, o cactus murcho. A porta, intacta. De longe escuta as sirenes. Helicópteros. Bombeiros. Reforços. Se desespera. Pensa em fugir. Volta. Bate as mãos na parede. Pega o revólver. Guarda o revólver. Prepara um café marrom-e-verde. Não tem coragem de beber. Tenta tapar o nariz até parar a respiração por completo. Respira. Vai correndo. (corrida lenta de velho). Chega na quadrifurcação em "X". Dobra à esquerda. Abre o bueiro. Mal sente o horrendo cheiro de tripas com cabelo de ovelhas e gemidos de todas as cores.

Desce a escadinhola, e brada

- Vocês agora são livres meus bebês. Chegou a hora! Chegou a hora!

Dentro do porão escuro de chão batido, várias cadeiras como uma platéia, e no palco uma espécie de jaula gradeada, com uma horda de 40 poodles sangrentos com seus bafos nojentos, alguns comendo-se a si mesmo, outros sem as pernas dianteiras, outros com pedaços de orelha faltando, outros velhos com suas tranças compridas, já sem dentes chupando ossos humanóides. Dentro do celeiro, entre os poodles, o esqueleto que devia ser da Dona Rosa, a ossada de Paulo José, os restos daquele gordinho que habitava o apartamento 304, um pedaço do osso-do-pé que não se sabia bem a quem pertencia - não era muito bom em reconhecer esse tipo de ossada, e um tanto de outros ossos e múmias com cabelo, alguns poucos nacos de gato, javalis inteiros que comprava no período natalino, urros e jatos de merda de cachorro na parede.
e um cheiro de mijo que já nem se sentia mais.


Com uma grande chave antiga, o velho abriu o cativeiro dos cachorros famintos, sendo comido quase que imediatamente por todos os que ainda tinham os dentes, (alguns davam-lhe gengivadas), outros mais novos com seus dentinhos de leite, rasgavam a carne velha e transparente como piranhas-poodle, em poucos segundos, num grande velhicídio coletivo.

A carne passada do dono saciaria os cachorros obesos pelo menos até o começo da madrugada, pra sorte do Morador do 208, que amarrado solitário numa das cadeiras disponíveis, como parte de uma seleta platéia, apenas gemia baixinho, boca vendada, tentando decerto agradecer a Deus a oportunidade de ter sido deixado pra ceia.

labiata



reformaram a ortografia
e eu com isso?

se a lingua é minha pátria
- e moro nela
como deixar que tirem as orquídeas
(da janela)
e coloquem em seu lugar
lírios
lavandas?

deixe minha janela em paz seu moço!
não moleste minha azaléia
desbotada
não sequestre os sóbrios girassóis
da casa dos outros!

as acácias rubras, deixem sob o sol
se visitar benguela e sentir seu perfume
não fique triste se não puder levar
o aroma pra lisboa
as cores pra macau
a brisa pro rio de janeiro!

pra comunicar precisamos de cores
de reflexos
movimentos

reformas não.

*

se a língua é minha pátria
fico então em silêncio
pra poder fazer de cada canto mudo do planeta
minha fala e meu mundo

sem fincar bandeiras
sem pronunciar discursos

nem distrair dos olhos o verso

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Passeio Noturno



De escrever já estava cansado. Havia anos escrevia, escrevia, escrevia. A boca, sêca, os olhos vermelhos. O que havia de mais atento, os dedos, formavam letras e frases e idéias, das mais absurdas!,

Mas os dedos agora estavam cansados.

Levantou, aproximou-se da janela e olhou com medo para a paisagem. Árvores de grandes copas, vizinhos reformando as casas, terrenos baldios, hectares de moradores da rua, comércio e cachorros. Escreveria sobre todos esses detalhes, com prosa rupestre e caligrafia avançada, mas de escrever já estava cansado. Cantaria refrões e redondilhas, sobre as raizes sobressalentes, os operários da construção civil, sobre os copos plásticos e tocos de cigarro, mendigos, capital e outros bichos, mas pra cantar não servia. Desafinava às vezes, quase sempre.

Resolveu sair pra rua. Lembrou-se de não esquecer das chaves em algum buteco, (celular não tinha.). A noite era dos temas prediletos no tempo em que de escrever não estava cansado. Saia pela rua com guardanapos e lápises, e às vezes até cantava!, ora vejam só. Desconhecia os aspectos da flora local mas tinha boa vontade com o tema; arremedava os passarinhos canoros que trabalhavam às 5h45 da manhã e flertava em lapsos com moças de bali, com seu inglês incrível e sotaque carregando a pronúncia do r intra-labial.

Agora tinha XX anos. Já estava passado, nada era como era. Infindos aniversários, natais, algumas páscoas, e a idade já pesava os ombros e o fórceps. Sentou-se no mesmo bar, onde nunca pendurou conta alguma, mas mesmo assim se sentia em casa. Tinha XX anos, é natural, com o tempo se vai andando, XX+1, XX+10, XX³! Nota? O cansaço vai tomando conta, a memória segue tomando nota, mas agora a caneta está falha. A tinta azul agora escreve em braile, e as anotações são misteriosas.

Ignorou o assunto.

As borboletas nascemorrem. A tartarugas, nascem, vão, crescem, seguem, andam, bora, mais um pouco, e quando viu, duzentos anos. Algumas morrem antes. Mas todas parecem nascer e morrer. Pronto. O resto é recheio

- Cerveja!

Escreveu na cabeça um poema que pensava assim:

"noite tão bela noite
suja
noite formosa noite
vaga
noite tão belo dia
breve!"

mas não anotou e logo esqueceu. Já pensou em melhores antes e esqueceu do mesmo jeito.

Tinha dez reais, gastou quinze. Pediu carona, carro não parou. Achou graça! Elogiou uma prostituta, sentiu-se vivo, sorriu para uma freira
(já eram 5h45!)
Os passarinhos canoros começaram a cantoria. Seus ouvidos abriram como rosas, embora isso fosse imperceptível pra esse tipo de míope. A canção era inédita, e oriental. Assim caminhou, atravessou ruas, descobriu o dia atropelando as sombras.

Comprou o jornal do dia seguinte!

Chegou em casa suado, as chaves no bolso. Cansado, pensava em dormir. Então escreveu. Linhas, estrofes, parágrafos, pausas, contratempos. O que havia de mais atento, sua mente, formava letras e frases e idéias, das mais absurdas!, que os dedos acompanharam por desacato.
Naquele dia sentiu seu nome gravado em pedra, sentiu pedra sobre pedra erguer-se uma morada virada pro mar, ou lagoa. Ao fundo, um caiaque, um escorregador ou uma fogueira.

Naquele dia sentiu-se vivo, típico sintoma de quem está entre o nascimento e a morte.



quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

(é tudo uma questão de milímetros)

É tudo uma questão de milímetros
Os milímetros da bala de raspão
do tropeço, da mira, do olhar
E feito borboleta somos esmagados
Uns dirão destino
Outros, sábios, nada dirão.

Os centímetros que separam uma boca da outra
são jardas
que anos-luz não seriam suficientes pra percorrer
Andariam-se os anos-luz em círculos até o marco zero da própria boca sua.

A distância daqui à lua é nada
sondas
macacos
homens
(cães!)
já a transpuseram.

O que dizer da distância que abraça e fica
Na garupa, corre, corre, ela não solta
(e de medo, aperta mais forte quanto mais se corre)

Pra transpor essas jardas, ir à lua, esquivar esse milímetro, não basta só dedicação

-> Paciência.

Régua, medidas, cálculos, deixe-os pra depois.
Leste, oeste, pra que o norte?

Há muito joguei minha bússula ao mar, pra deixar às ondas a tarefa de empurrar minha alma

- Milímetro pra cá
- Milímetro pra lá
Embalado pelas curvas da natureza eu vou:
- Milímetro pra cá
- Milímetro pra lá.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Epopéia Marôta



Tinha que subir os 3 andares de escada. Esse era o seu objetivo maior, talvez da semana. Desde às 4 da tarde estava meditando, meditando

subirdescada
subirdescada
subirdescada

Também, passou a manhã toda sentado, ainda comeu uns bolinhos de chuva, estava se sentindo pesado, com os arrotos vindo lá do joelho, densos. Levantou, atlético, deu tchau pro tio e saiu pra rua, onde os canarins cantavam, junto à fumaça ecológica dos ônibus, com o ronco das barrigas todas e com a voz que dizia, mantricamente

subirdescada

Analisando friamente, o motivo da obsessão repentina por subir escadas tem a ver com a falta de objetivos que a falta de objetivos causa. Precisava sentir-se vivo, e pra tal é necessário pensar em morte, mirar um fim. Hoje: Subir os 3 andares de escada.

*

Passou antes no banco, driblou os estagiários, passou na porta giratória

- você possui obj...

caralho, o celular nunca detecta, nunca detecta porque agora detectou?

tirou o celular, entregou ao guardinha e passou na porta giratória

- você possui...

droga! será que algum tipo extra-terreno instalou algum chip de titânio na sua clavícula?
Deve ser a nova dieta, rica em ferro e ácidos graxos
ou a perna mecânica!

não


era um par de grandes moedas de um real, e uma pequena porém maciça moedinha de dez centavos.

passou pela porta giratória!

foi pagar a conta, mas a maquininha não leu o código de barras.

puts!

a senhora do caixa colocou o óculos pra perto e digitou, calmamente repitindo os números trêmulos

três

dois

vinte e cinco..

cinco.. o cinco já foi...

sequência de sete zeros

vinte oit...

me dá isso aqui, puxou da mão da apavorada senhora e leu de três em três, num ritmo frenético, e a senhora digitou tudo em uma só respiração, pagou e não esperou o troco de um real e setenta e três.

teve medo da porta giratória trancar ao sair (!) então rapidamente já se desfez do celular, do chip e da perna, e saiu às pressas, que não estava ali a perder tempo.

*

Na tabacaria constatou que não se vendia tabaco. Quilos e montes de chocolates, balas e revistas, isso é o que se vendia na tabacaria ultimamente. Comprou três balas de café, quando sentiu falta do um real e setenta e três do troco não recebido.

Pagou com uma nota de cinqüenta reais.

A moça olhou a nota de vários ângulos, raspou a unha no cantinho do papel, e por fim despejou uma solução gelatinosa que em contato com a cédula ficou cor-de-rosa.

Irritou-se, pois não tinha cara de bandido, e não havia porque tanta averiguação. Estava até bem vestido, traje semi-sport.

- Então, é falsa?

Não era, mas a moça estava sem troco, e pediu pra ir ir rapidamente na farmácia ver se eles trocavam.


*

Na farmácia, a moça chegou junto com um rapaz narigudo com aspecto de publicitário. Aquele nariz bastante oleoso. Percebeu que foi atendida antes por ter grandes peitos, daqueles cheio de terminações nervosas.

- Troca pra mim, moço?

O farmacêutico-balconista, com pinta de mágico prestidigitador, não conseguia tirar os olhos grandes dos peitos da grande moça, motivo que fez com que um repentino mal de parkinson® lhe acometesse na hora de contar as notas, que pareciam todas banhadas em mel.

Acabou dando sete notas de dez reais pra moça, que, apesar da honestidade, era péssima em matemática e estava com o salto alto incomodando, o que fez com que ela saísse sem conferir o troco.

*

Quando a moça chegou com o dinheiro, já havia o nosso protagonista comido as três balas de café - mastigando, e estava nervoso, mexendo em um acabamento do balcão, colando, descolando, coland, descolando, colan, descolando, cola, descolando, col, descolando, co, descolando, c, até que descolou-se de vez.

Levou um enorme susto quando a moça voltou com o troco, meia hora depois*

*cientificamente, a moça demorou sete minutos e doze segundos, mas a sensação térmica era de meia hora, certamente.

Porra que demora! - teria gritado não fosse tímido e não se apercebesse agora dos enormes peitos que andavam junto à moça;

- Seu troco, senhor, desculpa a demora!

Saiu apressado, pensou em elogiar os seios de maneira elegante

- Graciosos bustos!
ou
- Gosto dos bicos grandes desse jeito!

mas (sorte) não falou nada disso e o diálogo foi mais ou menos assim:

- Seu troco, senhor, desculpa a demora!
- De nada?

Saiu nervoso, devia ter dito algo mais inteligente e afirmativo pra mocinha da tabacaria. Bom, mas não era muito chegado em tabacos, de qualquer modo não frequentaria o local muitas vezes mesmo.

*

Na porta de casa, como é comum nos dias de hoje, estava escorado um vendedor de dvd's. Geralmente olhamos pra esses vendedores de dvd's como se fossem parte da paisagem, mas dessa vez pensou: vou pegar um filme de aventura!

- um é cinco dois é dez três é quinze

Levou três, pra aproveitar a promoção:
Duro de Matar 1
Duro de Matar 2
Duro de Matar X - As origens

Pagou os quinze reais e estranhou: tinha cinqüenta reais no bolso e agora seguia com cinqüenta reais no bolso, e ainda mais quatro!

capital inicial
(R$50)
comprou três balas de café
(50 - 0,15 = R$49,85)
desfez-se das moedas
(49,85 - [conjunto de moedas] = R$49)
comprou três dvd's na promoção
(49 - 15 = R$34)
e sobrou no seu bolso cinquenta e quatro reais
(34 + [pulga atrás da orelha] = R$54!)


*


Entrou ressabiado no prédio, pela primeira vez o capitalismo estava a seu favor, como funciona com os tubarões: sai com dinheiro, compra, gasta, desperdiça e chega em casa com mais dinheiro ainda!

Por dez segundos sentiu-se jogando poker com os ex-presidentes estadosunidenses da américa, fumando charutos e falando gírias do texas

- A'rai fellow!


A empregada estava limpando as janelas e olhou com olhar de rena assustada, disse um oi diferente, como se viesse de fora e entrasse pros pulmões, junto com a respiração.

Desdenhou a empregada, e entrou no elevador, que tinha um enorme cheiro de sândalo.
Estava enfim chegando em casa!
Sentia-se pleno, vivo, cheio de histórias, castigado pelos minutos!
Sentiu falta de ter um filho, (passou rápido)
Já sentia o cheiro de cinzas com óleo de oliva típico da sua casa quando o elevador deu um baque e travou exatamente entre o terceiro e o quarto andar, no que seria o máximo do arrojo estético pra classe dos elevadores.

*

Não fosse as seis horas de claustrofobia até que a equipe da thaiser-welerson elevadores chegasse e resolvesse a questão, nosso amigo teria certamente esquecido que o dia hoje era de subir os três jogos de escada!

e nós, leitores, teríamos nos esquecido também de quão efêmeras são as vaidades humanas.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Humanos



Vocês aí
Imersos na intimidade de um cubo
Queria não precisar vê-los tão longe
Ou apenas não ter que olhar pra cima
E num só gesto abraçá-los todos

Mas vocês, eu bem vejo
Não querem nada além da intimidade de um cubo
E fecham as cortinas quando me ponho a olhar e sorrir,
ingenuamente