segunda-feira, 28 de setembro de 2009

arte na cidade

Conheci uma cidade que era toda pintada. As suas ruas eram de cidade, desenhadas pela cidade: cruzamentos, esquinas, subidas, curvas, e todas essas invenções de cidade. Depois, a medida que ia amadurecendo a cidade caminhava com o mundo, e se quisesse ainda ser cidade, deveria portar-se como tal. Não bastavam curvas, esquinas, descidas, cruzamentos: a cidade precisava seguir o andamento cidade. Suas esquinas, retas, cruzamentos e curvas agora ganhavam pinturas de catálogo, placas, normas e cartazes gigantes. Isso passou a ser o que se entendia por cidade. O chão agora era dividido em dois por umas listras, amarelas, duplas, picotadas, de acordo com o ritual ou finalidade. E a cidade virou arte. Pare, Estacione, vejam quanta beleza! Me pus a observar a beleza da vida a partir dessas pequenas transgressões que uma cidade impõe: suas pixações servem pra quê? suas placas servem pra quem? suas sinaleiras o que escondem? Mas quanta beleza há nessas convenções! Olha o arranjo de uma cidade, - cinza!, de olhos vermelhos amarelos verdes! Olhe a orquestra de buzinas, elas são a cidade, olha o passaro - ei! o que um pássaro faz ali? se ele é a cidade também. O pássaro, as pombas, os cachorros, os carros, o esgoto. A cidade é linda.
À noite a cidade é mais caprichosa. Se colore e se veste com roupas de cidade. A noite, como o pássaro, é também essa cidade. O que faz a cidade-cidade. O cheiro do mijo, o gato no telhado, todos seus ornamentos de cidade, o gari, a guirlanda, o semáforo amarelo piscando - são os desafios dessa nova cidade.
Mas se essa cidade que conheci era toda pintada, será que essa pintura guerreira queria nos dizer algo a mais do que sua linda beleza? Aquelas faixas, que adornavam os contornos dos chãos. São faixas que servem apenas como faixas deitadas ao chão. Ou sabe-se lá qual foi a intenção da primeira das faixas que ali deitou, e que logo em seguida muitas outras seguiram o exemplo, eram faixas claras que gritavam ali deitadas, mas o homem insensível, (outra característica da cidade), passava por cima com seus instrumentos imensos pesados carros, manchando ou machucando com seu pneu preto suas listras claras. As faixas deviam representar algo próximo da paz, da redenção, da proteção, que decerto os caminhantes usariam como tábuas de passar rios, ou onde muitas crianças pulavam^de^pé^em^pé, e se puseram a morrer todas devido a machucadura dos carros que ali também queriam passar...daí que aquelas faixas nas ruas são finas tumbas de significado e(...)

Hoje me pus na frente de um grupo dessas listras, conforme o esquema abaixo

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e de súbito os carros todos deixaram de cumprir sua função de atravessadores glóbulos brancos, vermelhos, prateados das artérias de cidade, e puseram-se a observar como eu esse versátil grupo listrado que ali jazia - parecia tão alvo, revitalizado - daí que senti algo de ancestral naquele gesto, como se aquelas zebras-de-chão fossem antigamente como elos encantados que levariam de um lado a outro da calçada, donde qualquer ser que nelas pisassem seria carregado até a outra margem daquilo que somos nós mesmos, mas que a cidade acabou tomando conta.

Mas acabei foi atravessando, com a sensação de que algum momento vou precisar atravessar aquele grupamento listrado na direção contrária, ou do contrário seguirei indo, indo, indo, e a cidade tem seus limites de cidade! Os carros que pararam para o meu atravessamento logo depois seguiram seus rumos, uns à esquerda, outros reto, quase todos de acordo com o que estava escrito nos cantos de como a cidade deveria ser. Segui meu rumo - que é o único que me cabe, e eles seguiram os muitos rumos deles, passarinhos, boeiros, e as cidades todas seguem com seus traquejos típicos de cidades que são. Grande abraço.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A antiga casa nova

A casa nova não tem pia na cozinha, ainda. Tem um fogão muito bonito. Pelo menos eu espero que ele fique muito bonito depois de limpo. Não tem nem gás, aliás. A casa nova não tem cortina, mas tem um janelão com vista pra pracinha. É bom olhar a pracinha às vezes. Mas não sempre. A pracinha enjoa a vista. Odeio a pracinha às vezes. Só às vezes.
O banheiro da casa nova está impecável. Um tapetinho azul marinho torto na entrada dá as boas vindas. Só falta o xampu. Sabonete, tem sim senhor, ou senhora. Um sabonete Dove Esfoliante. Chique, embora eu não saiba pra que serve um sabonete esfoliante. Que serve pra esfoliar eu sei, cáspeta, mas pra que serve essa esfoliação toda é que eu não faço a mínima. O vaso nunca deu problema, é bem quentinho e tem vista para a pia bege. A pia bege é mais enjoativa do que a pracinha. Fosse uma pia amarela e a minha vida seria mais engraçada.
A casa nova repete todas as palavras que digo. A falta de móveis me brinda com um eco insistente e chato como eu. Um eco que por vezes me irrita mais do que a pracinha, do que a pia bege, do que a minha mãe. A geladeira não gela, só esfria. Comprei umas Skols pra brindar o novo lar. Minha previsão é que elas (as Skol, Skols, ou Skóis?) gelem até o dia do meu aniversário (o próximo, de preferência). Na área de serviço, uma samambaia triste. E feia. E murcha. E desagradável. Odeio a samambaia triste feia murcha e desagradável.
O piso todo da casa é frio. Minto. O piso do quarto é de madeira. Acho importante esse detalhe, pois não gosto de andar de pantufas no quarto. O piso mais frio é o da sala, por um motivo muito simples: a sala é mais fria. A sala tem um sofá cheio de pêlos frios de cachorro. A sala é cheia de tomadas frias. As retangulares são 220 e as redondas são 110. Eu tenho uma extensão branca que serve pra ligar o rádio na sala fria e ouvir no banheiro quente. Olhando pra pia bege, nem tudo é perfeito.
Falta alguma coisa na casa nova. Falta alguma coisa além da pia na cozinha, do gás, da cortina, do xampu, dos móveis, da geladeira que gela.
Falta alguém que não seja triste, feia, murcha e desagradável como a samambaia. Que limpe o fogão bonito, que arrume o tapetinho do banheiro, que reclame a falta do condicionador para cabelos normais com ceramidas light, que traga um saco de dormir de casal e não repare a ausência de uma cama no que era pra ser um quarto, que sente no sofá e fique com a calça cheia de pêlos, que erre a tomada e queime o liquidificador. Que não seja feminista. Nem comunista. Nem ariana. E que não me culpe por ser naturalmente infiel.
A casa nova não tem pia na cozinha, ainda. E Skol é invariável. Uma Skol, Duas Skol, Três Skol.

Crônica

Fugi da casa dela e pulei a janela
Corri na viela atravessei passarela
E fui parar, eu fui
na Avenida Ceará
Da Boca do Monte, perto do Ermo, passando a montanha
Dobrando a esquina, pacote de bala e de naftalina
O ponta direita driblando o cachorro na boca do morro
Eu pedindo socorro pro dono do bar, pra moça da venda
Que vem me ajudar a me levantar, cuidado o declive
A pista tá livre, deu sorte essa vez, já morreram três
A perna tá bamba, cabeça doendo, joelho ralado, coração partido
Eu todo enrolado, mulher sem marido, mas domingo é hoje e tem futebol