sábado, 21 de fevereiro de 2009

uma história singular.

essa história ocorreu de fato há cerca de uns anos atrás, quando uma moça (um pouco distraída) entrou-se no mar, e foi, entrando, canela-joelho-coxas (a água estava morna como café frio). A Moça tinha receio do mar, das águas tinhosas do mar, das correntes grudentas do mar. Da suspeita calmaria que às vezes se acometia do mar. Medo do mar em si, entende? Daí que todos estranhamos quando ela entrou-se no mar e foi entrando, canela - até quase o umbigo. Naquele ponto banhavam-se apenas alguns surfistas e uns adolescentes que ansiavam por quase morrer. E um turista japonês que falava um bocado de italiano. A Moça abriu os braços e jogou-se de costas numa onda flácida, sorrindo. Boiava como bóiam os bebês, com um sorriso deslumbrado de quem mal começou a pensar na vida, e nem sequer suspeita da sombra da morte. Ou coisa que o valha. A Moça deslizava pelas ondas ligeiras, cafuné nos cachos-de-mar. Em troca recebia no corpo sua corrente salgada donde se ouvia o ruído da respiração dos peixinhos mais diversos. Se olhasse em volta, veria a paisagem caminhando feito ciranda em volta do mar, morros, pedras, concreto, zinco, e a Moça se admiraria com tanta inocência. E beleza. Sentia-se grande, enorme, elefante. Os surfistas e adolescentes pareciam agora pequenos besouros. Esticou o olho e reparou que, lá de longe, não se via mais o Japonês. Talvez tenha voltado pra casa, talvez tenha se afogado silenciosamente, quem sabe. Quem sabe? Por um momento lhe importou saber do Japonês - onde estaria? Das suas aflições, quem cuidaria?

*

Preciso foi o momento em que deu-se conta que ali onde estava já não dava pé. Fazia tempo já a praia e os humanos minguavam ao longe. E sem pensar no regresso ou em não mais voltar ali ficou, de maneira singular, boiando agora como bóia um adulto assustado. Nadar nunca soube. Fôlego não teria, de qualquer maneira. A correnteza agora se percebia nítidamente, puxando a Moça pelos pés, braços e cadeiras. Num sentido que só fazia sentido aos que desvendassem as trilhas apagadas do mar.
Não era o seu caso.

De todos os lados havia água e horizonte. Sua mente perdia aos poucos a censura, imaginava-se sendo comida por monstruosos peixes de dentes tortos, e às vezes até sorria disso. Num dado momento pôs-se a nadar feito cachorro, porém assustou-se. Boiando sentia-se em casa. Não era hora de nadar prum lado ou pro outro, o momento não era de fazer escolhas. Fugir, pra onde? Boiava agora como bóia um ser resignado. Lembrou-se do Japonês com certa intimidade. Talvez já estivesse morto (como seria?), talvez estivesse também naquela situação, boiando, tirando retratos de horizonte-e-mar. Talvez estivesse vivo! Imaginou-se vívida nos braços frágeis do Japonês. Sua boca deveria ter gosto de susto (de quem já beijou a morte). (preferia, entretanto, imaginar-se num beijo cheirando tutti-fruti). Tutti-fruti! Soubesse que o japonês falava um pouco de italiano, riria com nostalgia. Mas não riu, nem nunca soube dos seus dotes lingüísticos.

*

Avistou de longe um navio pequenino. Não se espantou. Que espanto haveria num navio em pleno mar? Acenava de longe à suposta tripulação, mais por educação que por socorro. Precisamos entender os motivos da Moça: sentia-se em casa naquele caos tranqüilo da imensidão. E já até havia se acostumado a encarar o céu de frente. A natureza de mar e horizonte escurecia lentamente seu céu. Lentamente, como o desespero de um náufrago em águas tranqüilas. Lentamente, porém de modo certeiro, como é costume das águas e seu modo de agir. Na primeira noite sozinha em alto mar, nada aconteceu. Esse foi o acontecimento mais marcante da noite. As estrelas dali eram bem mais nítidas, a constelação do arqueiro fazia agora mais sentido, em duas ou três versões diferentes. Um punhado de três-marias e até um grupo de estrelas que sugeriam um lagarto estranho surgiam a cada momento. A água estava um pouco mais gelada, porém o dia ainda se manifestava: por trás do espelho da lua soprava um bafo quente do sol noturno. E foi isso. Nada de piratas, tartarugas, tubarões ou coisa do tipo. Nem medo. Tanto que a Moça, que tardava pegar no sono em sua cama fofa com travesseiros de pena-de-ganso, ali nos lençóis pretos do oceano dormiu feito anjo, embora com as asas molhadas.

*

No outro dia acordava como quem acorda de um sonho. Tateou em busca do despertador que não tocava, e procurando evitar o sol que batia pela imensa janela do céu, puxou um naco de lençol, que se desfez em seu rosto como água gelada. Abriu o olho de recém nascido, boiando com certa naturalidade, e digamos que sentiu uma sensação boa ao se redescobrir mar adentro. Havia sonhado com fogo, com ruídos de gente, e ali estava novamente imersa na calmaria que passou a vida procurando. Invejou-se. Chegou meio-dia nos relógios terrestres. Ali, roncou sua barriga. Lábios secos. A fome e a sede que sentiu mataram qualquer tipo de filosofia de momento. Daí que fome e sede também distraíram a Moça de qualquer outro terror que a natureza pudesse aprontar. E assim passaram-se os dias e as noites. Um casal de golfinhos se exibiu timidamente no terceiro ou quarto sol, uma leve febre marítima surgiu no sexto ou sétimo alvorecer e em seguida passou. Tapetes mágicos rasgaram o céu com seus barulhos dias depois. Mas aí a Moça já desconfiava de seus sentidos, embora ainda desse crédito aos seus desvairios com o tato. A barriga já não roncava havia um tempo, e a sede de água era tanta, mas tanta, que já não se sentia sede alguma. Só um gosto de sal na boca, e um constante perfume de coisas afogadas.

*

Naquele dia-mar sentia-se serena. Algo em seu corpo denunciava um descanso próximo, como faz o corpo em situações extremas: adivinha. Sabia que a paz era sintoma da morte, mas não se desesperou. Ainda havia alguma vida a ser vivida. Perdera os sentidos quase todos, e nem as confusas imagens de sonho pareciam teimar mais em sua cabeça. O tato estava embaralhado, e a água agora parecia areia quente. Ali já sentia dificuldade de respirar, e seu corpo parecia muito mais pesado. - Adeus!, tentou gritar, mas a voz não saiu, destreinada que estava. Quando o escuro dos olhos parecia ir em direção a um escuro definitivo, sentiu o que deveria ser o tão comentado beijo da morte, em pessoa. Vou descrever como a Moça ela própria descreveria: o beijo da morte era assustado, trêmulo, e talvez lembrasse mesmo o cheiro de tutti-fruti, mas com alguma imaginação envolvida. Um beijo-soprado, acompanhado de uma constante pressão nas costelas, engraçado!, como é reconfortante o sufoco da morte! Sentiu-se de repente no centro das atenções, como se observada por um barulhento grupo de zumbis. Estariam todos mortos também? Um lugar onde se vivem os que estão mortos? Sempre achou que morrer seria um puf, pronto, morreu-se! Agora tudo parecia um grande ritual asfixiante, uma grande torcida macabra. Já não sentia o corpo do mar, e pensou nisso com tristeza. Estava falando alguma coisa pra alguém. "Sim, sim, sim!", acho que era só o que dizia. Sentiu um translúcido gosto de água, da mais pura água que já havia provado, e agora saía abraçada com dois anjos vestidos de branco, com discretas asas. Quase viu o mar, e seus olhos teimavam em tentar ver a última praia, a que pôs os últimos pés antes de partir para sua singular viagem. Estivesse lúcida veria aquela paisagem parada feito tatuagem em volta das águas. Morros, pedras, concreto, zinco. E a Moça se admiraria com tanta inocência. E beleza. Na ambulância, sentiu o soro avivar suas veias e por um momento teve alucinações de gente viva. - É um milagre!, alguém falou.

Estava viva, embora talvez se demorasse um bocado a acostumar com a idéia.
Mas lhes confesso uma coisa, que muito me alegra. Não lhe sairia tão cedo da cabeça a vontade de reunir em um gesto todas suas forças e de novo correr para o braço gigante do mar. Jogar-se no destino de suas tinhosas correntezas, flutuar novamente no embalo de sua sorte, por trilhas apagadas que só ganham sentido conforme se trilhe algum sentido. É mais ou menos o que acontece com os caminhos: somente serão caminhos se caminhados.

(assim pensou singelamente a moça dias depois ao entrar-se novamente no mar. A água fria récem batia pelos joelhos, mas o coração já estava na mão, pulsando como fosse a última vez!)

3 comentários:

dansesurlamerde disse...

eu tenho medo do mar.
não, não do mar, tenho medo das onda, sabe.

Naná Bap. disse...

um delícia essas letrinhas suas. de uma lindeza só.

delícia de boiar nele.

Marcos Pontes disse...

Fantástico! No duplo sentido. Pelo realismo fantástico do conto e suas imagens poéticas sureendente maravilhosas; e fantástico como elogio por conta do primeiro "fantástico".