segunda-feira, 20 de abril de 2009

Títulos, Nomes e Coisas

Tinha um amigo que se intitulava Poeta. Gostava do amigo, apesar de ele se intitular Poeta. Como pode alguém se intitular poeta? mas o Poeta se dizia, - sou poeta!

ou

- Muito prazer, sou Poeta.

O que faz de alguém poeta? O Poeta era poeta e pronto. Alguém decerto batizara ele assim, ou nalgum dia alguém o chamou

- Poeta!

Ou então foi assim, de mansinho, de repente todos já lhe chamavam Poeta, inclusive ele mesmo, o Poeta.

Foram os dois, o Amigo e o Poeta, tomar um daqueles cafés. Não há no mundo lugar melhor para um Poeta e um Amigo: um Café ou um Bar ou um Boteco. O que distingue o Café do Bar e do Boteco é o tipo de Amigo e de Poeta que freqüenta esse lugar. Mas em qualquer lugar desses, o Bar, o Café, o Boteco, lá você vai encontrar Amigos e Poetas que se intitulam poetas.

Foram os dois, o Amigo e o Poeta, cada um pediu um café que lhe aprouvesse. Essa palavra soou estranho, aprouvesse, parece uma palavra que não significa nada. Uma palavra que se autointitula - Meu nome é Aprouvesse.

O Amigo e o Poeta pediram cada um o café que lhes Aprouvesse. Logo chegou um outro rapaz - quem seria? Deveria ser alguém, ou não estaria frequentando aquele Café ou Bar ou Boteco. O Amigo, na qualidade de amigo, ofereceu um banco para esse rapaz, e perguntou:

- Quem és tu?

Esse rapaz se intitulava Professor. "Sou Professor". A coisa começava a ficar interessante. O Amigo e o Poeta se admiraram de estarem ali com o Professor. Teria ele profecias pra professar? Teria ele muitos alunos, seria ele uma espécie de lâmpada, alguém que clareasse as idéias, cegasse as idéias, clareasse as idéias: um típico professor?

Mas que besteira! Ele era o Professor e ponto! Não precisava professorar nada pra ser o Professor, aliás, desde que começamos, quantas poesias escreveu o Poeta? Nenhuma. Quantas novas amizades fez o Amigo? agora, timidamente, quem sabe uma. Pronto, assim as coisas funcionam, são e não são.

- Sou Professor, com muito orgulho/

Sim, pra se intitular Professor, tem-se que ter muito orgulho. Sabemos de largada que o Professor tinha um grande ego, e um salário mediano.

- /tenho muitos alunos, alguns bons, outros apenas alunos. E é isso e somente isso que me faz Professor.

- Então o que acontecerá, Professor, quando não mais tiver alunos? Mudará você de você?

Pela qualidade da pergunta supomos que foi feita pelo Poeta, que até então estava calado, como é tipico ao Poeta típico.

O Professor encheu-se de águas nos olhos. Quando não mais houvesse alunos, seria apenas alguém que se intitula Professor. Mais ou menos como era agora ali no Café. Não havia aluno. E havia alguém que se intitulava Professor. Professor de quê?

A mesa do Boteco estava gelada. O Poeta estava escrevendo num guardanapo, como fazendo jus ao seu nome de Poeta. Escrevia, riscava, escrevia, riscava. Típico. O Professor tentava ensinar alguma coisa a si mesmo, comer de palitinhos, remover manchas de café da toalha xadrez, e pra tudo dava-lhe alguma nota, ou quando o assunto era polêmico, dava algum conceito correspondido por letras do alfabeto ou estrelinhas. Se achasse por ali outro que se intitulasse Professor, certamente proporia um Conselho de Classe. O Amigo fazia de tudo pra que ninguém brigasse ou se desentendesse, sem perceber que brigar e se desentender também era parte da construção da amizade e da própria amizade. Em si.

Tudo ia lindo, até que entrou no Bar uma mulher. Diria facilmente seu nome, caso perguntassem

- Cristina!

mas como ninguém perguntou, não passava de uma mulher. Nem chegou a dizer

- Sou Mulher!

e nem era necessário. Embora de roupas que cobrissem boa parte de seus genitais, embora os peitos não fossem muito avantajados, embora o cabelo fosse razoavelmente curto, embora as feições fossem triangulares, estava claro que se tratava de uma Mulher.

O Amigo, amigo que era, estendeu-lhe a última cadeira vaga

- Junte-se a nós, Mulher. Vou lhe pedir um expresso com xantily.

Mas não tinha segundas intenções com a Mulher, embora a achasse atraente. Afinal de contas, era o Amigo, não o Amante, nem o Namorado, nem o Conquistador. Era Amigo e ponto. Deu dois beijinhos, um em cada bochecha macia da mulher, como faz o amigo que se preze.

Já o Professor tinha lá suas taras, como todo professor, e devia ter muitas coisas pra ensinar àquela Mulher, muitas datas, fórmulas, dicas, citações, idiomas, mas pra sermos aqui bem sinceros, não tinha lá muito jeito com isso. Ficou com uma coloração diferente nas bochechas, os óculos meio embaçados, sentiu que precisava naquele momento ele mesmo de um Professor, um professor que não fosse ele, Outro Professor, um que lhe ensinasse como proceder com a Mulher. Alguém que o ensinasse como ensinar aquela mulher, de modo que virasse Homem sem perder o título de Professor, de modo que pudesse aprender ensinando, (eis o blefe de todo o professor), o de aprender sem virar aluno, mas isso é impossível, impossível. E o Professor ficou ali impassível. Ensinando-se alguns nervosos truques de auto controle. Ensinando-se a enganar-se a si mesmo. Mas acabou que não aprendeu nada. Era mesmo um Professor. Ensinava, e pronto. Ensinava o que não sabia. Ensinava o que já estava pronto. Um típico Professor. Com seu ego cabeludo de Professor, intitulando-se Professor quando já não havia mais o que se ensinar, pra quem ensinar, pra que ensinar.

O Poeta por sua vez pôs-se a escrever inúmeros poemas. Um meio tropicalista que falava da Mulher em sua essência.

Mulher
De traços geométricos
De toques policarpios
De flaunas vis
Mulher
Que toques meu verso
Com o tenro toque plúmeo
De teus peitos trêmulos e jactosos
Nos umbrais de meu universo
Poeta que sou
Nos une
O verso

Acabou descartando-o como é de praxe a todo Poeta.

Escreveu outros, outros e outros, enfim tinha descoberto-se, não há Poeta nem poesia sem a musa, a Mulher que inspira seus rabiscos em letras romanas tortas, em guardanapos daqueles que espalhariam a gordura nos beiços do Gordo, guardanapos que esperariam pela obra definitiva, que o tornaria além de Poeta, Gênio, mas naquele momento derradeiro certamente a tinta da caneta quebraria, ou a ponta do lápis, secaria, secaria a memória do Poeta, tremeria, aí um Amigo chegaria num momento inoportuno de amigo, com seu abraço de amigo, conversaria sobre o clima: e a poesia devinitiva, que tornaria o Poeta mais Poeta, a obra do Gênio, tudo perderia-se no labirinto confuso da cabeça confusa do Poeta e dos assuntos amenos do amigo.

Cogitou suicidar-se: nunca teria a Mulher. Pra sempre seria um Poeta, trágico Poeta, pensando na Mulher, escrevendo, riscando, rasgando e apagando, e a Mulher continuaria apenas Mulher e não Sua Mulher, Minha Mulher, isso só nos seus poemas, afinal, o Poeta era ele!

Daí em diante, o que deveria inspirar, transpirava pelo Poeta, que já não sabia mais escrever, mas só pensar na bela exótica Mulher. Já o Professor bloqueava todas informações que lhe entrassem pelos olhos ouvidos boca narinas e orelhas, afinal era um Professor, e aí residia a única chance da Mulher se interessar por ele, jamais se interessaria por um reles aluno!, e ele afinal era um Professor, e se aquele lugar ali fosse um Café, deveria ser um respeitado Professor, Respeitavel Professor do Café, devia ser seu nome completo,

- Por favor, chame-me apenas "Respeitável", diria amávelmente.

Como era humilde aquele professor! Mas cá pra nós, aquilo não era um Café, era um Boteco, daí que ele deveria ser um Fanfarrão Professor, Fanfarrão Professor Vadio do Boteco, conforme a identidade,

- Por favor, chame-me apenas "Professor", diria, e seria o rei daquele Boteco ou Bar!


Já o Amigo estava contente, arranjara dois novos amigos naquela tarde, era mais Amigo do que nunca, estava feliz.

Mas logo o Poeta e o Professor perceberam que a Desejada Mulher jogava ao Amigo um sorriso que não era de amizade. Saberia ela que aquele se tratava do Amigo? Não era o Amante! Não era o Namorado! Não era o Encantamento! O Amigo sorria inocentemente para a Mulher, que lhe mostrava um sorriso cheirando indecências! Sim, era uma Mulher, afinal! Deveriam ter eles desconfiado! Eram Poetas, Professores, não Asnos!

O Poeta, enciumado, num gesto nada-poético pulou na garganta do Amigo, sufocando-o até a quase-vida. O Amigo, amigo que era, quase não esboçava reação. Tentava defender-se, só um pouco, de modo a não entristecer ou contrariar o Poeta, que ainda era seu amigo. Tentava defender-se. Só um pouco. De modo a não entristecer ou contrariar o Poeta. Que ainda era seu amigo?

- Não sou Poeta, nunca fui Poeta, nunca, nunca Fui!!! Sou uma Farsa! Uma Farsa! Igual a você! Tu nunca foste Amigo de verdade, é também uma Farsa! Um Amigo-Farsa!

Aquelas palavras machucaram o Amigo-Farsa. E nervoso, o Poeta-Farsa saiu daquele café, sem pagar a conta, levando consigo os setenta e seis guardanapos com aquela poesia desesperada de ex-poeta. (Dali, o Poeta-Farsa iria a uma editora, que publicaria aqueles rabiscos desesperados, com quebras de linha que dessem a entender se tratar de poesia, uma revisão pra ficar de acordo com a nova ortografia, e daí o Poeta-Farsa ficaria rico, muito rico. E passaria a ser chamado apenas Gênio, finalmente!)

O Amigo-Farsa, por sua vez, apressou-se em matar-se: Apesar da agradável companhia da Mulher e do Professor naquela tarde arejada de abril, naquele lugar fresco, ameno, com fumaças doces de cigarro percorrendo os narizes, não, o Amigo-Farsa não conseguiu encarar esse dilema que a vida lhe aprontava: Como poderia ser Amigo e Farsa ao mesmo tempo? Amigo e Inimigo? Como poderia ser e não ser? Os mortos, todos sabem, são amigos de verdade. Como os cães vivos. A quem se pode confiar segredos, como seria de se esperar de um cão vivo. Mas ele já não era Amigo, nem Inimigo, nem Amante, nem Pretendido; Já não era sequer uma Farsa: era um amontoado de carnes fedidas que se jogaram de um sexto andar qualquer. A perna esquerda ainda mexia um pouco, autônoma. De susto.


O Professor-Farsa se desesperou, a princípio. Pôs-se a correr, e assim ficou correndo, correndo, correndo, correndo, só parou quando passaram a chamar-lhe Atleta. Dos rótulos estava cansado.

Mataria-se dias depois, enforcado. Deveria ter curiosidade em saber como é a vida depois que se morre. Coisa que nenhum professor sabia de verdade, embora alguns até isso ensinem! Quando descobriu o Zero, viu que não tinha mais volta. Nem desvios. E daí nada mais aprendeu, ensinou. Nada Mais. Passaram então a chamá-lo Louco, mas seu ouvido de morto já não se preocupava com esse status que sobrevivera...

A Mulher... bom sei que seu nome era Cristina, e que era mulher. E que os versos que o Poeta-Farsa lhe escreveu nunca chegaram aos seus ouvidos de mulher. E que achou o café forte e o xantily muito doce. E que, distraída, não notou a confusão que se abatera no Café aquele dia. E que, distraída, não notou a confusão que se abatera no Bar que se dizia Café e que todos chamavam Boteco. E que distraída não viu seres brigando, encabulando, sumindo, se jogando de sacadas quaisquer. Lembrava que sentou numa mesa com três indivíduos: o Chato, o Prepotente e o Tímido, mas não sabia bem qual era qual. E que daí o mundo continuou acontecendo. Que se chamava Cristina até o momento que chegou no bar/boteco/café. Mas que esqueceu lá sua identidade.


...achei-a dias depois, o plástico já se descolando. Dizia o nome completo de Cristina. Tinha uma foto 3x4 do tempo em que Cristina tinha os cabelos compridos. Dizia o nome da mãe mas não o do pai de Cristina. Tinha uma assinatura trêmula escrita: Cristina. E um imenso polegar, que deveria ser o polegar de Cristina.

(Seria eu
Cristina?)

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