quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O chaveiro

Separou as ferramentas, grampos, chaves de fenda, luvas, máscara, chicletes, desengripantes, furadeiras, e partiu para o nº 28 da rua Almirante Peçanha, onde o esperava um rapaz de expressão neutra e constante meio-sorriso no rosto:

- Olá, perdi minha chave da caixinha de correspondência e não consigo...
- Sim...
Separou um grampo em forma de @ deu uma leve entortada na ponta e antes de prosseguir, perguntou:
- Apartamento 208 certo?
- Isso, essa caixinha aí de baixo.

A caixa de correspondência era das mais incômodas, rente ao chão, de modo que teve que ficar de cócoras, e ir baixando até achar o melhor jeito pra abri-la, numa postura intermediária entre o ajoelhar-se padrão e o deitar típico das sereias, de lado, com a cauda empinada.
Sentiu a primeira gota de suor atravessar o corpo inteiro, do meio das costas, até o cóccix, entrando pelo rêgo e perdendo-se nos cabelos do entrepúbis.

*

O movimento de arrombar conhecia muito bem, leves catucos, gira prum lado, catuca, gira prum lado, catuca, até a fechadura abrir-se.

Catuca, gira, catuca, gira

- Vai demorar muito?
- Não...(catuca, gira, catuca)...só mais um pouco...(catuca, gira, catuca)
- Pensei que seria mais fácil abrir uma simples caixinha de correspondência!
- É que não sei bem qual é o fabricante. Também não sei pra que lado abre, então tenho que tentar dos dois lados. O senhor consegue uma água por gentileza?
- Só um momento, busco uma água gelada no meu apartamento. Aproveito e já pego os R$20 reais do serviço. Não vai demorar muito não né?
- (grunhido).

*

Estava acostumado a abrir grandes portas sob tensão, destrinchava cadeados, e com um palito de fósforo e uma joaninha já abrira grades de ferro e baús de marfim. Agora parecia que havia desaprendido tudo! Uma porra duma caixinha de correspondência!

Catuca, gira, catuca...clll..clll estava a um passo do clique final quando uma sirene soou

- Puta que pariu, os tiras!, falou baixinho.

Sempre que estava arrombando uma fechadura, olhava pros lados, tenso, como reflexo da natureza esguia daquela profissão.

O carro da polícia parou, como cão farejando o medo.

Catuca, gira, catuca nervosamente...

Um policial gordo sai do carro, a mão rente à pistola na cintura.

- Tudo em ordem?
- Sim, seu policia, estou só trabalhando aqui, o morador foi buscar uma água gelada e já volta.

Suava como um suíno descontrolado sua.

Um soldado estranho salta do carro, tira a pistola do coldre e se posiciona rente ao capô.

- Deve haver algum engano!, ia falar, mas a polícia sempre, sabe-se lá por que, o deixava nervoso.

- Deve haver algum engano?, acabou falando, assustado.

Os policiais se entreolharam, um pediu desculpas pelo incômodo, e outro desejou bom dia e foi comprar uma empada de ricota num postinho de conveniências.


*

Passado o susto, voltou ao trabalho, dessa vez com um grande martelo e uma chave de fenda.
Simples: num cléc! enfim abriu a caixinha, e fez todo o procedimento de troca de fechadura que todos conhecemos muito bem.
Agora era só esperar, pegar os vinte reais e ir pra casa. Esperou um pouco. Mais um pouco. E outro pouco.
Passaram-se cerca de 20 minutos, e nada do morador voltar com a água e com o dinheiro.
Apertava o 208 no interfone, nada.

Filho da puta!

Uma senhora de cabelos desbotados na cor rosa entrou rapidamente pela grade principal do prédio, assustada.

Deve ser a combinação macacão, chave de fenda e barba comprida, muito próxima do ideal de terrorista da sociedade contemporânea.

Com as mãos levantadas, abanando, gritou - Dona, estou trabalhando para o rapaz do 208, ele ficou de pegar uma ág...
A senhora andou rapidamente em direção ao hall do prédio, abriu às pressas a porta e lá dentro, após um grande suspiro, chaveou a porta duas vezes.


(Ao entrar em casa, discou 190.
- Tem um suspeito no pátio do meu prédio, arrombando as correspondências e ameaçando os moradores com um grande martelo!)

*

Como passavam infinitos cinco minutos e estava preso no patiozinho do prédio, desesperou-se. Não podia sair, pois a grade era alta, tinha fios elétricos de alta-tensão, e 3 fechaduras Bulldog, mais uma daquelas De Bolinhas, que precisava de um aparato extra - e muito tempo - pra arrombar.

Caminhou em direção ao hall do edifício, onde a situação era um pouco melhor: uma fechadura Barítono, simples, daquelas que arrombava no colegial. Olhou prum lado. Olhou pro outro. Pegou a chave em @. Abriu de primeira.

Entrou no elevador, vigésimo andar. 201, 203, 205, 207, 209, nada de 208.
No fim, aquele corredor era parte de uma das bifurcações em "Y". Na outra deveriam estar os números pares.
bingo!

Isso afinal não era pra ser uma história de suspense ou de adivinhação:
202, 204, 206, 208!, pronto.

Uma disco-music tocava freneticamente, repetindo o mantra
"shake your nipples!"
ou coisa que o valha.

Tocou na campainha, que tocava no estilo cigarra
- prrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrré
Nada.
Tocou de novo. Nada. De novo. Nada. De novo, nada. Denovonada!

Só quando havia separado a Chave Barrington e a Alavanca Mulligan e se preparava pra arrombar a porta silenciosamente, deu-se conta que um leve giro na maçaneta, no sentido anti-horário, já bastava pra abri-la, porta bonita feita de um material parecido com a imbuia, com frisos laterais e uma espécie de marchetaria.

*

Abriu a porta lentamente. Fez um ruído de criança manhosa. Nhéé!
"shake your nipples", agora o refrão parecia mais claro.
E uma meia-lua tocada frenéticamente parecia mais evidente no arranjo.
Vozes temperadas e um órgão hammond malandreado.
Quadros ecléticos na parede: Marvin Gaye, Fábio Assunção, um ser mitológico similar a uma Hércula,
e um pôster autografado de Larry Bird.

Mas ele não estava ali pra prestar atenção a esses detalhes. Estava com sede, queria os R$20 reais e queria ir embora dali. - Hey!, gritou. - Alguém aí?
Abriu portas, gavetas, armários, a geladeira, [comeu um quitute, bebeu um suco de tangerina], debaixo da cama, espiou, já estava irritado quando avistou um tipo de portinhól, dando acesso ao que seria um quarto de duendes, se existissem esses tipos.

(a musica disco trava no shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-shake ya-)

A portinha deveria estar trancada, mas isso alongaria demais o nosso causo.

Clim!

abriu a portinha, e só havia alguns sapatos velhos.

*

Estava indo embora contrariado, quando resolveu apoderar-se de um relógio que mais tarde deveria ser avaliado em 50 reais. Merecia, e não era bem um roubo, visto que tinha feito o serviço e havia sido vilipendiado em seu tempo. E o que eram 50 reais hoje em dia?

Lá fora ruídos de sirene de polícia. Eram duas viaturas fazendo guarda na frente do prédio, com mais duas vindo da zona sul e um helicóptero da divisão de narcoterrorismo sendo destacado do município de Graúnas diretamente para o local.

Saiu do apartamento sorrateiro, sem se aperceber do movimento externo. Quando chegava ao fim da nossa bifurcação em "Y" um senhor com aspecto de republicano abriu a porta de um dos apartamentos.

- Bom dia, posso ajudá-lo?

Devia ser o síndico. Ouviam-se latidos similares aos latidos de cachorro vindo de dentro de seu apartamento.

- Meu nome é () e estava consertando a caixinha de correspondência do apartamento 208, (*suspiro).
- Ah, o Luis Eduardo do 208 teve um pequeno problema, mas me deixou vinte reais para pagar-lhe...
Já não queria os 20 reais, queria ir embora, mas.. afinal eram vinte reais.
O velho prosseguiu:
- Entre por gentileza, lhe alcanço um cafezinho e lhe dou seu dinheiro.

Da cozinha tipo americana, ouvia-se furiosos latidos similares ao de cachorro, e um cheiro de lã de ovelha. O velho agora parecia mais translúcido, e quando ficava contra a luz era possível contar suas artérias e enxergar o vulto de muitos dos seus órgãos vitais.

Trouxe um café muito marrom, com uma nuvem estranhamente esverdeada, e um ovo frito mal passado em um pequeno pir.
O ovo frito acentuou o cheiro de travessa de carne mal lavada misturado ao de pêlos de ovelha que se sentia, e isso parece que aguçou os seres que latiam tal cachorro, de quem só se ouvia as vozes roucas.

- São seus cachorros?, perguntou, enquanto arranjava coragem pra beber o café.
- Beba o café, meu filho, já lhe alcanço os 20 reais.
- Mas os cachorros são seus?, perguntou, impaciente.
O velho saiu, contrariado, e disse. - São meus bebês, beba o café!
De longe, entrando em uma peça à direita ouviu-se de longe dizer:
- Não se esqueça de beber o café!

Jogou o café num vaso que abrigava um cactus silvestre garboso, apesar de sem flores, mas com espinhos graúdos. Olhou para o ovo mal passado e sentiu vontade de comê-lo e de vomitar ao mesmo tempo. Levantou-se quando a vontade de vomitar sobressaiu-se.

Refez o caminho do velho, corredor, primeira à direita, pensou em chamar

- Senhor?

Mas como o cheiro de cérebro e a respiração dos cachorros aumentavam assustadoramente seu volume, resolveu por ficar quieto.

*

Chegou em uma bifurcação (esses apartamentos antigos são muito gozados), dessa vez em "X". Não sei se bifurcações em "X" chamam-se bifurcações. Mas era esse o quadro. Tinha várias opções, tal vestibular

a) em frente
b) dobrar à esquerda
c) dobrar à direita
d) voltar
e) sentar-se no chão, indiferente

marcou a letra "b", que dava num corredor com grafites datados da década de 60, com influências inacreditáveis de Andy Warhol e citações de Truman Capote ou um desses sujeitos excêntricos e andróginos. Nada de águias, brasões ou coisas de maçonaria, como seria de se esperar desses tipos republicanos.

No final do corredor, um bueiro, com vozes alucinantes vindas de dentro, e um bafo de tenebrosidade escapando pelas suas bordas metálicas.

*

Apavorado, voltou correndo até a polifurcação em "X", dobrou à esquerda, donde repousava o ovo mal passado com um par de moscas verdes sobrevoando e um cactus murcho com espinhos caídos ao lado.
A porta estava trancada com uma conhecida combinação de fechaduras distintas, o que motivou nosso herói a saltar pela janela.

(Tudo bem, estávamos no 20º andar, mas o chão de folhas fofas de outono certamente amorteceria uns 6 andares de queda. Nosso herói, caso não tivesse morrido nesse momento, ganharia tratamento médico gratuito, alimentação e estadia, tudo parte do pacote jurídico que teria direito após detido pela polícia e ser enquadrado por "terrorismo", "furto", "vandalismo", "vadiagem", "obnubilação de fatos" e "comportamento obtuso", esse decerto por portar 1,5 gramas de maconha no bolso, quando no momento da queda.)

FIM

*

O velho chega na cozinha trêmulo. Observa o ovo mal passado, o cactus murcho. A porta, intacta. De longe escuta as sirenes. Helicópteros. Bombeiros. Reforços. Se desespera. Pensa em fugir. Volta. Bate as mãos na parede. Pega o revólver. Guarda o revólver. Prepara um café marrom-e-verde. Não tem coragem de beber. Tenta tapar o nariz até parar a respiração por completo. Respira. Vai correndo. (corrida lenta de velho). Chega na quadrifurcação em "X". Dobra à esquerda. Abre o bueiro. Mal sente o horrendo cheiro de tripas com cabelo de ovelhas e gemidos de todas as cores.

Desce a escadinhola, e brada

- Vocês agora são livres meus bebês. Chegou a hora! Chegou a hora!

Dentro do porão escuro de chão batido, várias cadeiras como uma platéia, e no palco uma espécie de jaula gradeada, com uma horda de 40 poodles sangrentos com seus bafos nojentos, alguns comendo-se a si mesmo, outros sem as pernas dianteiras, outros com pedaços de orelha faltando, outros velhos com suas tranças compridas, já sem dentes chupando ossos humanóides. Dentro do celeiro, entre os poodles, o esqueleto que devia ser da Dona Rosa, a ossada de Paulo José, os restos daquele gordinho que habitava o apartamento 304, um pedaço do osso-do-pé que não se sabia bem a quem pertencia - não era muito bom em reconhecer esse tipo de ossada, e um tanto de outros ossos e múmias com cabelo, alguns poucos nacos de gato, javalis inteiros que comprava no período natalino, urros e jatos de merda de cachorro na parede.
e um cheiro de mijo que já nem se sentia mais.


Com uma grande chave antiga, o velho abriu o cativeiro dos cachorros famintos, sendo comido quase que imediatamente por todos os que ainda tinham os dentes, (alguns davam-lhe gengivadas), outros mais novos com seus dentinhos de leite, rasgavam a carne velha e transparente como piranhas-poodle, em poucos segundos, num grande velhicídio coletivo.

A carne passada do dono saciaria os cachorros obesos pelo menos até o começo da madrugada, pra sorte do Morador do 208, que amarrado solitário numa das cadeiras disponíveis, como parte de uma seleta platéia, apenas gemia baixinho, boca vendada, tentando decerto agradecer a Deus a oportunidade de ter sido deixado pra ceia.

labiata



reformaram a ortografia
e eu com isso?

se a lingua é minha pátria
- e moro nela
como deixar que tirem as orquídeas
(da janela)
e coloquem em seu lugar
lírios
lavandas?

deixe minha janela em paz seu moço!
não moleste minha azaléia
desbotada
não sequestre os sóbrios girassóis
da casa dos outros!

as acácias rubras, deixem sob o sol
se visitar benguela e sentir seu perfume
não fique triste se não puder levar
o aroma pra lisboa
as cores pra macau
a brisa pro rio de janeiro!

pra comunicar precisamos de cores
de reflexos
movimentos

reformas não.

*

se a língua é minha pátria
fico então em silêncio
pra poder fazer de cada canto mudo do planeta
minha fala e meu mundo

sem fincar bandeiras
sem pronunciar discursos

nem distrair dos olhos o verso

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Passeio Noturno



De escrever já estava cansado. Havia anos escrevia, escrevia, escrevia. A boca, sêca, os olhos vermelhos. O que havia de mais atento, os dedos, formavam letras e frases e idéias, das mais absurdas!,

Mas os dedos agora estavam cansados.

Levantou, aproximou-se da janela e olhou com medo para a paisagem. Árvores de grandes copas, vizinhos reformando as casas, terrenos baldios, hectares de moradores da rua, comércio e cachorros. Escreveria sobre todos esses detalhes, com prosa rupestre e caligrafia avançada, mas de escrever já estava cansado. Cantaria refrões e redondilhas, sobre as raizes sobressalentes, os operários da construção civil, sobre os copos plásticos e tocos de cigarro, mendigos, capital e outros bichos, mas pra cantar não servia. Desafinava às vezes, quase sempre.

Resolveu sair pra rua. Lembrou-se de não esquecer das chaves em algum buteco, (celular não tinha.). A noite era dos temas prediletos no tempo em que de escrever não estava cansado. Saia pela rua com guardanapos e lápises, e às vezes até cantava!, ora vejam só. Desconhecia os aspectos da flora local mas tinha boa vontade com o tema; arremedava os passarinhos canoros que trabalhavam às 5h45 da manhã e flertava em lapsos com moças de bali, com seu inglês incrível e sotaque carregando a pronúncia do r intra-labial.

Agora tinha XX anos. Já estava passado, nada era como era. Infindos aniversários, natais, algumas páscoas, e a idade já pesava os ombros e o fórceps. Sentou-se no mesmo bar, onde nunca pendurou conta alguma, mas mesmo assim se sentia em casa. Tinha XX anos, é natural, com o tempo se vai andando, XX+1, XX+10, XX³! Nota? O cansaço vai tomando conta, a memória segue tomando nota, mas agora a caneta está falha. A tinta azul agora escreve em braile, e as anotações são misteriosas.

Ignorou o assunto.

As borboletas nascemorrem. A tartarugas, nascem, vão, crescem, seguem, andam, bora, mais um pouco, e quando viu, duzentos anos. Algumas morrem antes. Mas todas parecem nascer e morrer. Pronto. O resto é recheio

- Cerveja!

Escreveu na cabeça um poema que pensava assim:

"noite tão bela noite
suja
noite formosa noite
vaga
noite tão belo dia
breve!"

mas não anotou e logo esqueceu. Já pensou em melhores antes e esqueceu do mesmo jeito.

Tinha dez reais, gastou quinze. Pediu carona, carro não parou. Achou graça! Elogiou uma prostituta, sentiu-se vivo, sorriu para uma freira
(já eram 5h45!)
Os passarinhos canoros começaram a cantoria. Seus ouvidos abriram como rosas, embora isso fosse imperceptível pra esse tipo de míope. A canção era inédita, e oriental. Assim caminhou, atravessou ruas, descobriu o dia atropelando as sombras.

Comprou o jornal do dia seguinte!

Chegou em casa suado, as chaves no bolso. Cansado, pensava em dormir. Então escreveu. Linhas, estrofes, parágrafos, pausas, contratempos. O que havia de mais atento, sua mente, formava letras e frases e idéias, das mais absurdas!, que os dedos acompanharam por desacato.
Naquele dia sentiu seu nome gravado em pedra, sentiu pedra sobre pedra erguer-se uma morada virada pro mar, ou lagoa. Ao fundo, um caiaque, um escorregador ou uma fogueira.

Naquele dia sentiu-se vivo, típico sintoma de quem está entre o nascimento e a morte.



quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

(é tudo uma questão de milímetros)

É tudo uma questão de milímetros
Os milímetros da bala de raspão
do tropeço, da mira, do olhar
E feito borboleta somos esmagados
Uns dirão destino
Outros, sábios, nada dirão.

Os centímetros que separam uma boca da outra
são jardas
que anos-luz não seriam suficientes pra percorrer
Andariam-se os anos-luz em círculos até o marco zero da própria boca sua.

A distância daqui à lua é nada
sondas
macacos
homens
(cães!)
já a transpuseram.

O que dizer da distância que abraça e fica
Na garupa, corre, corre, ela não solta
(e de medo, aperta mais forte quanto mais se corre)

Pra transpor essas jardas, ir à lua, esquivar esse milímetro, não basta só dedicação

-> Paciência.

Régua, medidas, cálculos, deixe-os pra depois.
Leste, oeste, pra que o norte?

Há muito joguei minha bússula ao mar, pra deixar às ondas a tarefa de empurrar minha alma

- Milímetro pra cá
- Milímetro pra lá
Embalado pelas curvas da natureza eu vou:
- Milímetro pra cá
- Milímetro pra lá.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Epopéia Marôta



Tinha que subir os 3 andares de escada. Esse era o seu objetivo maior, talvez da semana. Desde às 4 da tarde estava meditando, meditando

subirdescada
subirdescada
subirdescada

Também, passou a manhã toda sentado, ainda comeu uns bolinhos de chuva, estava se sentindo pesado, com os arrotos vindo lá do joelho, densos. Levantou, atlético, deu tchau pro tio e saiu pra rua, onde os canarins cantavam, junto à fumaça ecológica dos ônibus, com o ronco das barrigas todas e com a voz que dizia, mantricamente

subirdescada

Analisando friamente, o motivo da obsessão repentina por subir escadas tem a ver com a falta de objetivos que a falta de objetivos causa. Precisava sentir-se vivo, e pra tal é necessário pensar em morte, mirar um fim. Hoje: Subir os 3 andares de escada.

*

Passou antes no banco, driblou os estagiários, passou na porta giratória

- você possui obj...

caralho, o celular nunca detecta, nunca detecta porque agora detectou?

tirou o celular, entregou ao guardinha e passou na porta giratória

- você possui...

droga! será que algum tipo extra-terreno instalou algum chip de titânio na sua clavícula?
Deve ser a nova dieta, rica em ferro e ácidos graxos
ou a perna mecânica!

não


era um par de grandes moedas de um real, e uma pequena porém maciça moedinha de dez centavos.

passou pela porta giratória!

foi pagar a conta, mas a maquininha não leu o código de barras.

puts!

a senhora do caixa colocou o óculos pra perto e digitou, calmamente repitindo os números trêmulos

três

dois

vinte e cinco..

cinco.. o cinco já foi...

sequência de sete zeros

vinte oit...

me dá isso aqui, puxou da mão da apavorada senhora e leu de três em três, num ritmo frenético, e a senhora digitou tudo em uma só respiração, pagou e não esperou o troco de um real e setenta e três.

teve medo da porta giratória trancar ao sair (!) então rapidamente já se desfez do celular, do chip e da perna, e saiu às pressas, que não estava ali a perder tempo.

*

Na tabacaria constatou que não se vendia tabaco. Quilos e montes de chocolates, balas e revistas, isso é o que se vendia na tabacaria ultimamente. Comprou três balas de café, quando sentiu falta do um real e setenta e três do troco não recebido.

Pagou com uma nota de cinqüenta reais.

A moça olhou a nota de vários ângulos, raspou a unha no cantinho do papel, e por fim despejou uma solução gelatinosa que em contato com a cédula ficou cor-de-rosa.

Irritou-se, pois não tinha cara de bandido, e não havia porque tanta averiguação. Estava até bem vestido, traje semi-sport.

- Então, é falsa?

Não era, mas a moça estava sem troco, e pediu pra ir ir rapidamente na farmácia ver se eles trocavam.


*

Na farmácia, a moça chegou junto com um rapaz narigudo com aspecto de publicitário. Aquele nariz bastante oleoso. Percebeu que foi atendida antes por ter grandes peitos, daqueles cheio de terminações nervosas.

- Troca pra mim, moço?

O farmacêutico-balconista, com pinta de mágico prestidigitador, não conseguia tirar os olhos grandes dos peitos da grande moça, motivo que fez com que um repentino mal de parkinson® lhe acometesse na hora de contar as notas, que pareciam todas banhadas em mel.

Acabou dando sete notas de dez reais pra moça, que, apesar da honestidade, era péssima em matemática e estava com o salto alto incomodando, o que fez com que ela saísse sem conferir o troco.

*

Quando a moça chegou com o dinheiro, já havia o nosso protagonista comido as três balas de café - mastigando, e estava nervoso, mexendo em um acabamento do balcão, colando, descolando, coland, descolando, colan, descolando, cola, descolando, col, descolando, co, descolando, c, até que descolou-se de vez.

Levou um enorme susto quando a moça voltou com o troco, meia hora depois*

*cientificamente, a moça demorou sete minutos e doze segundos, mas a sensação térmica era de meia hora, certamente.

Porra que demora! - teria gritado não fosse tímido e não se apercebesse agora dos enormes peitos que andavam junto à moça;

- Seu troco, senhor, desculpa a demora!

Saiu apressado, pensou em elogiar os seios de maneira elegante

- Graciosos bustos!
ou
- Gosto dos bicos grandes desse jeito!

mas (sorte) não falou nada disso e o diálogo foi mais ou menos assim:

- Seu troco, senhor, desculpa a demora!
- De nada?

Saiu nervoso, devia ter dito algo mais inteligente e afirmativo pra mocinha da tabacaria. Bom, mas não era muito chegado em tabacos, de qualquer modo não frequentaria o local muitas vezes mesmo.

*

Na porta de casa, como é comum nos dias de hoje, estava escorado um vendedor de dvd's. Geralmente olhamos pra esses vendedores de dvd's como se fossem parte da paisagem, mas dessa vez pensou: vou pegar um filme de aventura!

- um é cinco dois é dez três é quinze

Levou três, pra aproveitar a promoção:
Duro de Matar 1
Duro de Matar 2
Duro de Matar X - As origens

Pagou os quinze reais e estranhou: tinha cinqüenta reais no bolso e agora seguia com cinqüenta reais no bolso, e ainda mais quatro!

capital inicial
(R$50)
comprou três balas de café
(50 - 0,15 = R$49,85)
desfez-se das moedas
(49,85 - [conjunto de moedas] = R$49)
comprou três dvd's na promoção
(49 - 15 = R$34)
e sobrou no seu bolso cinquenta e quatro reais
(34 + [pulga atrás da orelha] = R$54!)


*


Entrou ressabiado no prédio, pela primeira vez o capitalismo estava a seu favor, como funciona com os tubarões: sai com dinheiro, compra, gasta, desperdiça e chega em casa com mais dinheiro ainda!

Por dez segundos sentiu-se jogando poker com os ex-presidentes estadosunidenses da américa, fumando charutos e falando gírias do texas

- A'rai fellow!


A empregada estava limpando as janelas e olhou com olhar de rena assustada, disse um oi diferente, como se viesse de fora e entrasse pros pulmões, junto com a respiração.

Desdenhou a empregada, e entrou no elevador, que tinha um enorme cheiro de sândalo.
Estava enfim chegando em casa!
Sentia-se pleno, vivo, cheio de histórias, castigado pelos minutos!
Sentiu falta de ter um filho, (passou rápido)
Já sentia o cheiro de cinzas com óleo de oliva típico da sua casa quando o elevador deu um baque e travou exatamente entre o terceiro e o quarto andar, no que seria o máximo do arrojo estético pra classe dos elevadores.

*

Não fosse as seis horas de claustrofobia até que a equipe da thaiser-welerson elevadores chegasse e resolvesse a questão, nosso amigo teria certamente esquecido que o dia hoje era de subir os três jogos de escada!

e nós, leitores, teríamos nos esquecido também de quão efêmeras são as vaidades humanas.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Humanos



Vocês aí
Imersos na intimidade de um cubo
Queria não precisar vê-los tão longe
Ou apenas não ter que olhar pra cima
E num só gesto abraçá-los todos

Mas vocês, eu bem vejo
Não querem nada além da intimidade de um cubo
E fecham as cortinas quando me ponho a olhar e sorrir,
ingenuamente