sábado, 26 de novembro de 2011

Hoje mesmo o glamour arrotou em minha mesa. Eu estava apenas de pijamas. Eu estava vago, sem cueca, estava de meias cano curto furadas, e apenas fui conduzido à sala de jantar. Sentei em algum lugar daquela vasta mesa, de uma madeira viva de um tipo já extinto de parentesco com o mogno, que peguei um jornal e me pus a enxergá-lo. Meu sono foi ferido pelo barulho dos talheres raspando pratos gastos, e quando o frango muito mal passado se pôs a escorrer em minha frente, um calor azedo subiu a garganta, e suspirei. Eu queria apenas um pão, de qualquer data, eu queria apenas ficar, mas apressadamente se ajuntaram ao meu redor todos eles, a me encarar.


1.
O que há de excepcional nisso? São muitas cadeiras estofadas e é natural que se tenha o costume de assentar-se nelas à primeira oportunidade. São cadeiras com um estofado verde musgo, de aparência pegajosa, mas sensíveis ao toque, com um tato de bochecha infantil, mas uma sensualidade que talvez também seja comum à bochecha da criança, mas que preferimos imaginar e cheirar uma bochecha de mulher criada e cuidada... De pronto avistei:

As Luxurias
Inocentes em sua provocação. Roçam suas panturrilhas em mim, me atiçam, pois de longe, sentada como se fosse pagar a conta, a Culpa nos olha com olhos de mulher mais velha perdendo o viço...

A Razão e a Razão.
Como são distintas! Sentam uma de cada lado da mesa. Isso acarreta em sempre ficar do lado de alguma delas ao sentar-se. Me dizem que isso é natural. Elas mesmos, um dia sentam aqui, outro acolá.

A Ética
É comum termos alguém autista na família. A ética se ocupa de si mesmo, e toca piano divinamente.

2.
Enfim a Arte nos trouxe o de beber. Serviu as taças com maestria e foi aplaudida por todos ao redor da mesa. Porém no escuro da cozinha lhe chamavam: inútil, fútil, incapaz!

A Cultura então questionou: porque não podemos sentar-nos à mesa como todo mundo? Estamos famintos!

O problema se espraiou num telefone-sem-fio, a Dúvida consultando o Medo, o Vilipêndio aviltando os Fatos, a Notícia se exibindo à Inocência, e quando enfim o bolo informativo chegou ao crivo da Justiça, aconteceu de a Verdade estar lavando as mãos...

Decidiu-se com um par ou ímpar entre a Sorte e o Garbo, no que resolveu-se:

1.1.1.1.a- A Arte e a Cultura, para sentar-se à mesa, deverão vestir-se adequadamente: sendo expressamente proibido: Trajes de Xale, Mantos Goumé, Sapatos Keller ou Botas de Chuva.

1.1.1.2.a- Independente do traje, as rés deverão sempre, em caso de dúvidas quanto ao proceder: pedir desculpas, pedir permissão, e evitar de pedir favores.

Então aquele dia tinha tudo para ser um diferencial. Acordaram-me antes mesmo de acordar-se a manhã, deram-me o jornal que viria, prepararam um banquete tão às pressas, que o frango veio mal passado. Eu queria apenas um pão. A Cultura, em nome de todas as minorias, pediu permissão para sentar-se, impecável, com um traje de um tecido que lembrava o chambé. Sentaram-se todos, ritmados, maquiados. Pediram desculpas pelo atraso. Evitaram de pedir o sal.

3.
Elogiei publicamente quão bela estava a Arte, embora secretamente eu a preferisse em trajes de mucama. Imaginava um dia desnudá-la. Queria o seu peso por cima do meu, morto. Acordei. Perguntei-lhe se a ela lhe agradavam os trajes e a pesada maquiagem. A Arte respondeu-me com um tímido sorriso.

4.
Notei que a Cultura não estava muito à vontade. Sempre a vi com uma combinação estranha de conjuntos exóticos de trajes de roupas diferenciados. Chinelas de bambú, bombachas, vestidos floridos, colares, cestos na cabeça! Agora estava com um terno cheirando a brié, envergada em sinistras ombreiras, sufocada com o nó daquela gravata! Estava sufocada a Cultura, que frouxou o nó do pescoço e foi aí rígidamente advertida pela Etiqueta!

(Velha muquirana)

5.
Cansei-me!
Levantei-me e me pus a caminhar, espantando todas as presenças de minha volta, dos meus calcanhares, e me pus a correr, e fui, tão rápido e por ruas tão não caminhadas, e ladeiras de tão escorregadias, e na sombra gorda de uma árvore cresci, e no barulho dos pássaros e no cabelo do presente agarrei melhores alegorias.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Fale Baixo, Amor

Isto é um filme. Um filme. Longa metragem. 16mm. A equipe um dia arrumou o cenário para o primeiro plano da primeira cena do primeiro flizz, que se desenrolaria num diálogo entre um macho humano com uma fêmea do mesmo tipo. Como é um filme, desnecessário descrever o que vocês vêem agora. Esse cenário desse jeito, os cabelos da mulher, que impacto! A pessoa responsável pela direção tem tudo na cabeça. E o fotógrafo, com vocação farmacêutica traduz os seus geniais garranchos garranchos em seus presets e olhares, que resulta nessa coisa retangular que vemos. Tem também o som, que às vezes se faz presente e que, quando não percebemos é porque está bom. O roteirista faz o que faço, porém usando uma fonte distinta e pen_ando, digo, pensando as coisas de acordo com as limitações de orçamento. Azar o dele. Estamos aqui vendo esse filme e já está tudo pronto. Somos os privilegiados. Depois saímos a falar mal dos diálogos, dos costumes, do figurino e dos figurantes! ...Ei, olha, viu só o que ela disse? Não concordo. Acho que o homem tem razão não acha? As mulheres sempre exageram em tudo. Em tudo não, faça-se justiça. Olha, por exemplo, essa maquiagem, na medida, a equipe toda está de parabéns. Será que foi idéia da mulher? Será que sai maquiada assim, egípcia, num dia nublado, pra passear no mercado, tal qual atuando? E esse cabelo, que beleza. Confesso que me perdi um pouco nos diálogos quando me pus a olhar a boca dessa mulher. Essas covinhas. Voltei ao diálogo naquela parte que foca nos pêlos do nariz do homem. Maldito cinema latinoamericano, com esses closes pornográficos...

...você pareceu um tanto surpreso com minha última fala. Ahm! Quem sou eu pra ter fala!.. Parece que estou aqui a representar, o que não é verdade. Meio parado esse filme não? Eles agora parece que resolveram ficar em silêncio. Não falam mais nada. Não discordam. Olha! Olha! Oh!//

No preciso momento do filme em que a mulher pega na mão do homem, (como é mesmo o nome deles?), em que os olhares tensos esperam o beijo, o tapa, a revelação, essa moça aqui do meu lado abraçada em mim desde sempre agora agarra mais forte a minha mão e fita os meus olhos no preciso momento em que a atriz gentilmente sussura ao namorado nervoso!!!

Fale baixo, amor...
Fale baixo, amor...

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Uma fábula

O fanfarrão e o lobo

Todos os dias, um fanfarrão levava um rebanho de ovelhas às montanhas perto da aldeia, como é de se imaginar.

Um dia, por trakinagem, ele correu de lá de cima gritando:

- Óia o lobo! Óia o lobo!

Os Habitantes da província trataram de apanhar suas peixeiras para caçar o dito lobo.

Encontraram o fanfarrão num canto, gargalhando, que falou assim:

- Búrro!

E, vendo que a brincadeira realmente assustava geral, no outro dia foi a mesma coisa:

- Óia o lobo! Óia o lobo!

E novamente os moradores da província trataram de apanhar as suas peixeiras,pra furar o lobo, incluindo os vegetarianos, e os ambientalistas.

De tanto isso acontecer, os habitantes da província passaram a não botar mais fé no que dizia o fanfarrão. E no dia em que a cena se repetiu:

- Óia o lobo! Óia o lobo!

Um dos malandros disse:

- Vai se fuder, esse moleque mente pra caralho!

Só que dessa vez era o lobo mesmo. Que graças a deus era amansado. E a ele lhe deram um pedaço de carne, e um refresco.

domingo, 18 de julho de 2010

Notas Helvédicas!

Sabemos todos que a Suiça é o único país que derrotou a atual campeã mundial de futebolismo, a Espanha. Não sei do regulamento, mas que título se dá a quem venceu o campeão? Não me venham com disse-me-dirce, saldo de gols, desempate por número de cartões amarelos, nem cara-ou-coroa

(, nem com palpites advindos de frutos-do-mar.)

Sabemos que quem perdeu para o campeão, leva o notório título de vice-campeão, além do disco Let It Bleed autografado pelos (fugiu o nome do conjunto agora).

E quem ganhou do campeão, pô! Como chamamos?

Não ridicularizem se o assunto é futebol. Eu mesmo, só sei da diferença aparente entre Suiça e Suécia devido ao esporte, que me fez olhar a bandeira - a da Suécia azul e amarela representando a cor dos cabelos e olhos dos seus habitantes, não obrigatoriamente nessa ordem aqui exposta. Já a bandeira da suíça é menorzinha, e deve representar algum incêndio medieval, que provocou essa necessidade de urgência, de socorro. Uma cruz branca sob um manto vermelho. (Gosto dessas cores. Da urgência, gosto menos).

O próximo contato que tivemos com a Suíça, é que foram extremamente pacienciosos com o crooner brasileiro Vinícius de Moraes, enquanto este bebia uísque e contava anedotas em inglês, e que até lhe sorriram! Que deve então ser um país acolhedor, que te deixa falar inglês carioca, que se o sujeito quiser vai e fala italiano, vai e arrisca um francês, ou ainda apenas observa o sujeito jorrando em alemão, ou ainda leva um papo reto em Romanche! E que lá, como aqui em Porto Alegre, as pessoas talvez se comprimentem com um excesso de três beijos! Será que os jovens também são emo? Que os cachorros trepam nas nossas pernas?


(Poderia jurar que o país seria capaz de formar de uma orquestra de bichos, e que ninguém se espantaria com os ursos trombonistas se apresentando em alguma praça local, tal sua generosidade!)

Mas as coisas não são assim tão simples.

Como diria Albert, enquanto relativizava em Berna: "Die sau ist nicht gezahmt, und hat das knie des kindes gebissen!"

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

arte na cidade

Conheci uma cidade que era toda pintada. As suas ruas eram de cidade, desenhadas pela cidade: cruzamentos, esquinas, subidas, curvas, e todas essas invenções de cidade. Depois, a medida que ia amadurecendo a cidade caminhava com o mundo, e se quisesse ainda ser cidade, deveria portar-se como tal. Não bastavam curvas, esquinas, descidas, cruzamentos: a cidade precisava seguir o andamento cidade. Suas esquinas, retas, cruzamentos e curvas agora ganhavam pinturas de catálogo, placas, normas e cartazes gigantes. Isso passou a ser o que se entendia por cidade. O chão agora era dividido em dois por umas listras, amarelas, duplas, picotadas, de acordo com o ritual ou finalidade. E a cidade virou arte. Pare, Estacione, vejam quanta beleza! Me pus a observar a beleza da vida a partir dessas pequenas transgressões que uma cidade impõe: suas pixações servem pra quê? suas placas servem pra quem? suas sinaleiras o que escondem? Mas quanta beleza há nessas convenções! Olha o arranjo de uma cidade, - cinza!, de olhos vermelhos amarelos verdes! Olhe a orquestra de buzinas, elas são a cidade, olha o passaro - ei! o que um pássaro faz ali? se ele é a cidade também. O pássaro, as pombas, os cachorros, os carros, o esgoto. A cidade é linda.
À noite a cidade é mais caprichosa. Se colore e se veste com roupas de cidade. A noite, como o pássaro, é também essa cidade. O que faz a cidade-cidade. O cheiro do mijo, o gato no telhado, todos seus ornamentos de cidade, o gari, a guirlanda, o semáforo amarelo piscando - são os desafios dessa nova cidade.
Mas se essa cidade que conheci era toda pintada, será que essa pintura guerreira queria nos dizer algo a mais do que sua linda beleza? Aquelas faixas, que adornavam os contornos dos chãos. São faixas que servem apenas como faixas deitadas ao chão. Ou sabe-se lá qual foi a intenção da primeira das faixas que ali deitou, e que logo em seguida muitas outras seguiram o exemplo, eram faixas claras que gritavam ali deitadas, mas o homem insensível, (outra característica da cidade), passava por cima com seus instrumentos imensos pesados carros, manchando ou machucando com seu pneu preto suas listras claras. As faixas deviam representar algo próximo da paz, da redenção, da proteção, que decerto os caminhantes usariam como tábuas de passar rios, ou onde muitas crianças pulavam^de^pé^em^pé, e se puseram a morrer todas devido a machucadura dos carros que ali também queriam passar...daí que aquelas faixas nas ruas são finas tumbas de significado e(...)

Hoje me pus na frente de um grupo dessas listras, conforme o esquema abaixo

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E || || || || || || || ||
U || || || || || || || ||
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e de súbito os carros todos deixaram de cumprir sua função de atravessadores glóbulos brancos, vermelhos, prateados das artérias de cidade, e puseram-se a observar como eu esse versátil grupo listrado que ali jazia - parecia tão alvo, revitalizado - daí que senti algo de ancestral naquele gesto, como se aquelas zebras-de-chão fossem antigamente como elos encantados que levariam de um lado a outro da calçada, donde qualquer ser que nelas pisassem seria carregado até a outra margem daquilo que somos nós mesmos, mas que a cidade acabou tomando conta.

Mas acabei foi atravessando, com a sensação de que algum momento vou precisar atravessar aquele grupamento listrado na direção contrária, ou do contrário seguirei indo, indo, indo, e a cidade tem seus limites de cidade! Os carros que pararam para o meu atravessamento logo depois seguiram seus rumos, uns à esquerda, outros reto, quase todos de acordo com o que estava escrito nos cantos de como a cidade deveria ser. Segui meu rumo - que é o único que me cabe, e eles seguiram os muitos rumos deles, passarinhos, boeiros, e as cidades todas seguem com seus traquejos típicos de cidades que são. Grande abraço.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A antiga casa nova

A casa nova não tem pia na cozinha, ainda. Tem um fogão muito bonito. Pelo menos eu espero que ele fique muito bonito depois de limpo. Não tem nem gás, aliás. A casa nova não tem cortina, mas tem um janelão com vista pra pracinha. É bom olhar a pracinha às vezes. Mas não sempre. A pracinha enjoa a vista. Odeio a pracinha às vezes. Só às vezes.
O banheiro da casa nova está impecável. Um tapetinho azul marinho torto na entrada dá as boas vindas. Só falta o xampu. Sabonete, tem sim senhor, ou senhora. Um sabonete Dove Esfoliante. Chique, embora eu não saiba pra que serve um sabonete esfoliante. Que serve pra esfoliar eu sei, cáspeta, mas pra que serve essa esfoliação toda é que eu não faço a mínima. O vaso nunca deu problema, é bem quentinho e tem vista para a pia bege. A pia bege é mais enjoativa do que a pracinha. Fosse uma pia amarela e a minha vida seria mais engraçada.
A casa nova repete todas as palavras que digo. A falta de móveis me brinda com um eco insistente e chato como eu. Um eco que por vezes me irrita mais do que a pracinha, do que a pia bege, do que a minha mãe. A geladeira não gela, só esfria. Comprei umas Skols pra brindar o novo lar. Minha previsão é que elas (as Skol, Skols, ou Skóis?) gelem até o dia do meu aniversário (o próximo, de preferência). Na área de serviço, uma samambaia triste. E feia. E murcha. E desagradável. Odeio a samambaia triste feia murcha e desagradável.
O piso todo da casa é frio. Minto. O piso do quarto é de madeira. Acho importante esse detalhe, pois não gosto de andar de pantufas no quarto. O piso mais frio é o da sala, por um motivo muito simples: a sala é mais fria. A sala tem um sofá cheio de pêlos frios de cachorro. A sala é cheia de tomadas frias. As retangulares são 220 e as redondas são 110. Eu tenho uma extensão branca que serve pra ligar o rádio na sala fria e ouvir no banheiro quente. Olhando pra pia bege, nem tudo é perfeito.
Falta alguma coisa na casa nova. Falta alguma coisa além da pia na cozinha, do gás, da cortina, do xampu, dos móveis, da geladeira que gela.
Falta alguém que não seja triste, feia, murcha e desagradável como a samambaia. Que limpe o fogão bonito, que arrume o tapetinho do banheiro, que reclame a falta do condicionador para cabelos normais com ceramidas light, que traga um saco de dormir de casal e não repare a ausência de uma cama no que era pra ser um quarto, que sente no sofá e fique com a calça cheia de pêlos, que erre a tomada e queime o liquidificador. Que não seja feminista. Nem comunista. Nem ariana. E que não me culpe por ser naturalmente infiel.
A casa nova não tem pia na cozinha, ainda. E Skol é invariável. Uma Skol, Duas Skol, Três Skol.

Crônica

Fugi da casa dela e pulei a janela
Corri na viela atravessei passarela
E fui parar, eu fui
na Avenida Ceará
Da Boca do Monte, perto do Ermo, passando a montanha
Dobrando a esquina, pacote de bala e de naftalina
O ponta direita driblando o cachorro na boca do morro
Eu pedindo socorro pro dono do bar, pra moça da venda
Que vem me ajudar a me levantar, cuidado o declive
A pista tá livre, deu sorte essa vez, já morreram três
A perna tá bamba, cabeça doendo, joelho ralado, coração partido
Eu todo enrolado, mulher sem marido, mas domingo é hoje e tem futebol

terça-feira, 28 de abril de 2009

Profissões: contador

Se os antropólogos são aqueles que vão a um estádio de futebol e escrevem gigantes relatórios
E os filósofos são aqueles que inventam sempre uma nova palavra quando querem inventar alguma idéia nova em forma de palavra
Se os juristas decidem se o errado é certo ou errado
E os professores são aqueles que aprenderam a ensinar conforme os ensinaram a ensinar
Se os artistas são aqueles que vêem brilho no distante de seus olhos

Que resta dos contadores
Que apenas
Contam?

Mas antropólogos também completam complexas planilhas entre ameríndios
Filósofos saem com suas redes de caçar antigas borboletas às ruas
Juristas preenchem cruzadinhas em branco, com canetas esferográficas recarregáveis
Professores seguem ensinando a partir de exemplos alguns exemplos a mais
E os artistas programam batidas eletrônicas

Mas os contadores
Apenas
Contam.

Antropólogos sujam as botas, mas ainda têm uma mesa limpa e um escritório
Juristas já não usam perucas ornamentadas, mas às vezes tateiam a cabeça em busca dos bobes e rabos-de-cavalo
Professores desceram dos palanques, mas usam seus saltos-plataforma
E os artistas até já ganham dinheiro com publicidade.

Contadores
Apenas
Contam.


Os versadores versam
Os obstetras desobstruem
Os produtores produzem
Produtos por eles produzidos

Os violeiros rasqueiam
Os cantadores cantam
Outros na capela
de joelho
rezam...

Mas os contadores
Meu irmão
A essa altura
A toda hora
Os contadores somente
Contam!

Contam o tempo que falta pras seis e quinze
Quando pegam seus casacos
Engarrafam-se nas ruas
Passam na padaria
Pagam o fiado
Em casa o fígado já está temperado
E as crianças todas chorando

As contas se dependuram na geladeira
O conjuge reclama reclames antigos
O telefone toca
A barriga dói
A pastilha já não abranda a dor
A comida toda tem gosto de fígado!
O fígado tem gosto de plástico!
As crianças não se parecem em nada com o pai!
E o pão
Caralho!
Era velho!
As crianças
As mulheres
Os problemas!
As contas!
Que se fodam!

Contadores apenas contam.
Nada mais.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Títulos, Nomes e Coisas

Tinha um amigo que se intitulava Poeta. Gostava do amigo, apesar de ele se intitular Poeta. Como pode alguém se intitular poeta? mas o Poeta se dizia, - sou poeta!

ou

- Muito prazer, sou Poeta.

O que faz de alguém poeta? O Poeta era poeta e pronto. Alguém decerto batizara ele assim, ou nalgum dia alguém o chamou

- Poeta!

Ou então foi assim, de mansinho, de repente todos já lhe chamavam Poeta, inclusive ele mesmo, o Poeta.

Foram os dois, o Amigo e o Poeta, tomar um daqueles cafés. Não há no mundo lugar melhor para um Poeta e um Amigo: um Café ou um Bar ou um Boteco. O que distingue o Café do Bar e do Boteco é o tipo de Amigo e de Poeta que freqüenta esse lugar. Mas em qualquer lugar desses, o Bar, o Café, o Boteco, lá você vai encontrar Amigos e Poetas que se intitulam poetas.

Foram os dois, o Amigo e o Poeta, cada um pediu um café que lhe aprouvesse. Essa palavra soou estranho, aprouvesse, parece uma palavra que não significa nada. Uma palavra que se autointitula - Meu nome é Aprouvesse.

O Amigo e o Poeta pediram cada um o café que lhes Aprouvesse. Logo chegou um outro rapaz - quem seria? Deveria ser alguém, ou não estaria frequentando aquele Café ou Bar ou Boteco. O Amigo, na qualidade de amigo, ofereceu um banco para esse rapaz, e perguntou:

- Quem és tu?

Esse rapaz se intitulava Professor. "Sou Professor". A coisa começava a ficar interessante. O Amigo e o Poeta se admiraram de estarem ali com o Professor. Teria ele profecias pra professar? Teria ele muitos alunos, seria ele uma espécie de lâmpada, alguém que clareasse as idéias, cegasse as idéias, clareasse as idéias: um típico professor?

Mas que besteira! Ele era o Professor e ponto! Não precisava professorar nada pra ser o Professor, aliás, desde que começamos, quantas poesias escreveu o Poeta? Nenhuma. Quantas novas amizades fez o Amigo? agora, timidamente, quem sabe uma. Pronto, assim as coisas funcionam, são e não são.

- Sou Professor, com muito orgulho/

Sim, pra se intitular Professor, tem-se que ter muito orgulho. Sabemos de largada que o Professor tinha um grande ego, e um salário mediano.

- /tenho muitos alunos, alguns bons, outros apenas alunos. E é isso e somente isso que me faz Professor.

- Então o que acontecerá, Professor, quando não mais tiver alunos? Mudará você de você?

Pela qualidade da pergunta supomos que foi feita pelo Poeta, que até então estava calado, como é tipico ao Poeta típico.

O Professor encheu-se de águas nos olhos. Quando não mais houvesse alunos, seria apenas alguém que se intitula Professor. Mais ou menos como era agora ali no Café. Não havia aluno. E havia alguém que se intitulava Professor. Professor de quê?

A mesa do Boteco estava gelada. O Poeta estava escrevendo num guardanapo, como fazendo jus ao seu nome de Poeta. Escrevia, riscava, escrevia, riscava. Típico. O Professor tentava ensinar alguma coisa a si mesmo, comer de palitinhos, remover manchas de café da toalha xadrez, e pra tudo dava-lhe alguma nota, ou quando o assunto era polêmico, dava algum conceito correspondido por letras do alfabeto ou estrelinhas. Se achasse por ali outro que se intitulasse Professor, certamente proporia um Conselho de Classe. O Amigo fazia de tudo pra que ninguém brigasse ou se desentendesse, sem perceber que brigar e se desentender também era parte da construção da amizade e da própria amizade. Em si.

Tudo ia lindo, até que entrou no Bar uma mulher. Diria facilmente seu nome, caso perguntassem

- Cristina!

mas como ninguém perguntou, não passava de uma mulher. Nem chegou a dizer

- Sou Mulher!

e nem era necessário. Embora de roupas que cobrissem boa parte de seus genitais, embora os peitos não fossem muito avantajados, embora o cabelo fosse razoavelmente curto, embora as feições fossem triangulares, estava claro que se tratava de uma Mulher.

O Amigo, amigo que era, estendeu-lhe a última cadeira vaga

- Junte-se a nós, Mulher. Vou lhe pedir um expresso com xantily.

Mas não tinha segundas intenções com a Mulher, embora a achasse atraente. Afinal de contas, era o Amigo, não o Amante, nem o Namorado, nem o Conquistador. Era Amigo e ponto. Deu dois beijinhos, um em cada bochecha macia da mulher, como faz o amigo que se preze.

Já o Professor tinha lá suas taras, como todo professor, e devia ter muitas coisas pra ensinar àquela Mulher, muitas datas, fórmulas, dicas, citações, idiomas, mas pra sermos aqui bem sinceros, não tinha lá muito jeito com isso. Ficou com uma coloração diferente nas bochechas, os óculos meio embaçados, sentiu que precisava naquele momento ele mesmo de um Professor, um professor que não fosse ele, Outro Professor, um que lhe ensinasse como proceder com a Mulher. Alguém que o ensinasse como ensinar aquela mulher, de modo que virasse Homem sem perder o título de Professor, de modo que pudesse aprender ensinando, (eis o blefe de todo o professor), o de aprender sem virar aluno, mas isso é impossível, impossível. E o Professor ficou ali impassível. Ensinando-se alguns nervosos truques de auto controle. Ensinando-se a enganar-se a si mesmo. Mas acabou que não aprendeu nada. Era mesmo um Professor. Ensinava, e pronto. Ensinava o que não sabia. Ensinava o que já estava pronto. Um típico Professor. Com seu ego cabeludo de Professor, intitulando-se Professor quando já não havia mais o que se ensinar, pra quem ensinar, pra que ensinar.

O Poeta por sua vez pôs-se a escrever inúmeros poemas. Um meio tropicalista que falava da Mulher em sua essência.

Mulher
De traços geométricos
De toques policarpios
De flaunas vis
Mulher
Que toques meu verso
Com o tenro toque plúmeo
De teus peitos trêmulos e jactosos
Nos umbrais de meu universo
Poeta que sou
Nos une
O verso

Acabou descartando-o como é de praxe a todo Poeta.

Escreveu outros, outros e outros, enfim tinha descoberto-se, não há Poeta nem poesia sem a musa, a Mulher que inspira seus rabiscos em letras romanas tortas, em guardanapos daqueles que espalhariam a gordura nos beiços do Gordo, guardanapos que esperariam pela obra definitiva, que o tornaria além de Poeta, Gênio, mas naquele momento derradeiro certamente a tinta da caneta quebraria, ou a ponta do lápis, secaria, secaria a memória do Poeta, tremeria, aí um Amigo chegaria num momento inoportuno de amigo, com seu abraço de amigo, conversaria sobre o clima: e a poesia devinitiva, que tornaria o Poeta mais Poeta, a obra do Gênio, tudo perderia-se no labirinto confuso da cabeça confusa do Poeta e dos assuntos amenos do amigo.

Cogitou suicidar-se: nunca teria a Mulher. Pra sempre seria um Poeta, trágico Poeta, pensando na Mulher, escrevendo, riscando, rasgando e apagando, e a Mulher continuaria apenas Mulher e não Sua Mulher, Minha Mulher, isso só nos seus poemas, afinal, o Poeta era ele!

Daí em diante, o que deveria inspirar, transpirava pelo Poeta, que já não sabia mais escrever, mas só pensar na bela exótica Mulher. Já o Professor bloqueava todas informações que lhe entrassem pelos olhos ouvidos boca narinas e orelhas, afinal era um Professor, e aí residia a única chance da Mulher se interessar por ele, jamais se interessaria por um reles aluno!, e ele afinal era um Professor, e se aquele lugar ali fosse um Café, deveria ser um respeitado Professor, Respeitavel Professor do Café, devia ser seu nome completo,

- Por favor, chame-me apenas "Respeitável", diria amávelmente.

Como era humilde aquele professor! Mas cá pra nós, aquilo não era um Café, era um Boteco, daí que ele deveria ser um Fanfarrão Professor, Fanfarrão Professor Vadio do Boteco, conforme a identidade,

- Por favor, chame-me apenas "Professor", diria, e seria o rei daquele Boteco ou Bar!


Já o Amigo estava contente, arranjara dois novos amigos naquela tarde, era mais Amigo do que nunca, estava feliz.

Mas logo o Poeta e o Professor perceberam que a Desejada Mulher jogava ao Amigo um sorriso que não era de amizade. Saberia ela que aquele se tratava do Amigo? Não era o Amante! Não era o Namorado! Não era o Encantamento! O Amigo sorria inocentemente para a Mulher, que lhe mostrava um sorriso cheirando indecências! Sim, era uma Mulher, afinal! Deveriam ter eles desconfiado! Eram Poetas, Professores, não Asnos!

O Poeta, enciumado, num gesto nada-poético pulou na garganta do Amigo, sufocando-o até a quase-vida. O Amigo, amigo que era, quase não esboçava reação. Tentava defender-se, só um pouco, de modo a não entristecer ou contrariar o Poeta, que ainda era seu amigo. Tentava defender-se. Só um pouco. De modo a não entristecer ou contrariar o Poeta. Que ainda era seu amigo?

- Não sou Poeta, nunca fui Poeta, nunca, nunca Fui!!! Sou uma Farsa! Uma Farsa! Igual a você! Tu nunca foste Amigo de verdade, é também uma Farsa! Um Amigo-Farsa!

Aquelas palavras machucaram o Amigo-Farsa. E nervoso, o Poeta-Farsa saiu daquele café, sem pagar a conta, levando consigo os setenta e seis guardanapos com aquela poesia desesperada de ex-poeta. (Dali, o Poeta-Farsa iria a uma editora, que publicaria aqueles rabiscos desesperados, com quebras de linha que dessem a entender se tratar de poesia, uma revisão pra ficar de acordo com a nova ortografia, e daí o Poeta-Farsa ficaria rico, muito rico. E passaria a ser chamado apenas Gênio, finalmente!)

O Amigo-Farsa, por sua vez, apressou-se em matar-se: Apesar da agradável companhia da Mulher e do Professor naquela tarde arejada de abril, naquele lugar fresco, ameno, com fumaças doces de cigarro percorrendo os narizes, não, o Amigo-Farsa não conseguiu encarar esse dilema que a vida lhe aprontava: Como poderia ser Amigo e Farsa ao mesmo tempo? Amigo e Inimigo? Como poderia ser e não ser? Os mortos, todos sabem, são amigos de verdade. Como os cães vivos. A quem se pode confiar segredos, como seria de se esperar de um cão vivo. Mas ele já não era Amigo, nem Inimigo, nem Amante, nem Pretendido; Já não era sequer uma Farsa: era um amontoado de carnes fedidas que se jogaram de um sexto andar qualquer. A perna esquerda ainda mexia um pouco, autônoma. De susto.


O Professor-Farsa se desesperou, a princípio. Pôs-se a correr, e assim ficou correndo, correndo, correndo, correndo, só parou quando passaram a chamar-lhe Atleta. Dos rótulos estava cansado.

Mataria-se dias depois, enforcado. Deveria ter curiosidade em saber como é a vida depois que se morre. Coisa que nenhum professor sabia de verdade, embora alguns até isso ensinem! Quando descobriu o Zero, viu que não tinha mais volta. Nem desvios. E daí nada mais aprendeu, ensinou. Nada Mais. Passaram então a chamá-lo Louco, mas seu ouvido de morto já não se preocupava com esse status que sobrevivera...

A Mulher... bom sei que seu nome era Cristina, e que era mulher. E que os versos que o Poeta-Farsa lhe escreveu nunca chegaram aos seus ouvidos de mulher. E que achou o café forte e o xantily muito doce. E que, distraída, não notou a confusão que se abatera no Café aquele dia. E que, distraída, não notou a confusão que se abatera no Bar que se dizia Café e que todos chamavam Boteco. E que distraída não viu seres brigando, encabulando, sumindo, se jogando de sacadas quaisquer. Lembrava que sentou numa mesa com três indivíduos: o Chato, o Prepotente e o Tímido, mas não sabia bem qual era qual. E que daí o mundo continuou acontecendo. Que se chamava Cristina até o momento que chegou no bar/boteco/café. Mas que esqueceu lá sua identidade.


...achei-a dias depois, o plástico já se descolando. Dizia o nome completo de Cristina. Tinha uma foto 3x4 do tempo em que Cristina tinha os cabelos compridos. Dizia o nome da mãe mas não o do pai de Cristina. Tinha uma assinatura trêmula escrita: Cristina. E um imenso polegar, que deveria ser o polegar de Cristina.

(Seria eu
Cristina?)