sábado, 27 de dezembro de 2008

Cacos do ano



1)
O que dizer sobre esse período do ano que se coloca como hiato entre o natal e o ano novo?
Percebo pelo movimento das ruas que alguns ainda trabalham.
muitos.
Mas os outros estão todos confusos, sem orientação.
Na sinaleira, esperando o sinal pra atravessar. (nenhum carro à vista)
Na estrada, movimentando.
Aguardando os fogos de artifício.
Pisando na areia da praia - blasé
Assistindo TV, a espera de um comando
De uma missão.
- Ajudar os irmãos de santa catarina?
Não!
Esse não é o espírito desse momento de ano.
Os irmãos de santa catarina que esperem até o ano que vem.
As coisas todas que esperem até o ano que vem.
O momento agora é de reflexão.

2)
Dizem que é momento de reflexão
Mas o único espelho que havia em casa, quebrou
Seria o momento de, em pé, discursar
E a única boca que trago no rosto, calou

Os pés, formigando, sentaram-se, autônomos
O banco com um dos assentos vagos
Justo o da janela!

Nesse período do mês, só vassoura e pá
Juntando os cacos, os restos e as cascas do ano que passou lotado
Nesse período, não adianta fazer sinal
O ônibus já passou!
Lotado!

3)
Deve ser por isso que alguns ainda mantém todos aqueles enfeites de natal
Luzes
Deixa tudo ali, esperando.
Essa época do ano é de esperança.
E enquanto esperamos, esperamos, e só!
Deixo o tempo ocupar os espaços, e habitar em mim.

4)
O papai-noel torto na janela, tento ajeitar, e ele segue torto.
Pra quê? Já acabou o natal, e como tudo agora - só ano que vem!
Olho pros lados, furtivo.
Olho de novo.

Arranco!, mãos e dentes, rasgo o papai noel do pequeno trenó, jogo com raiva pro lado de fora.
(uma sirene agora soa mais alto que os rumores nas janelas)


5)
As luzinhas de natal são muito unidas. Respeitam as diferenças, e a vermelha mesmo sendo mais bonita, pisca de forma sincronizada com a amarela e a azul, ali ninguém quer aparecer mais que ninguém.
Porém, com o fim do natal percebi que mudou a coreografia das suas luzes. Demorada. (Resignada?)

E as luzes teriam que brilhar essas piscadas resignadas durante todo esse vão-de-ano, se dependesse da vontade da espécie humana.

Porém no único sábado antes do reveillon, a luz verde, que durante as festas era mero complemento ao colorido do pinheiro, resolveu ganhar voz (calando-se)

Apagou-se.
E como que em luto, a amarela, a vermelha, a azul - todas as outras apagaram-se também, em uníssono.

Eis o espírito dessa época do ano:
Um grande coral das mais diversas vozes
Todos calados em uníssono.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Conto de Natal



Guirlandas dependuradas, adornos de porta, sorrisos de fim-de-ano. Fora isso, tudo normal.
Ceia, peru, papai-noel, tudo como habitava a cabeça da nossa infância.

Já aos sete anos não acreditava mais na data, na bíblia e nos reis magos, mas esperava com singela angústia alguns presentes, quitutes, e...
Presentes e quitutes já estavam de bom tamanho (praquelas crianças que tiveram arrepios e chegaram a ter pesadelos com medo do espírito de natal, puxador de pernas na calada na noite!)

Algum parente fazia a figura do bom velhinho, e depois de alguém puxar sua barba postiça, algum pequeno ainda se espantava:

- Vó!!!

Tolas crianças.

Agora os adultos cabeludos colocam pra gelar suas grandes garrafas de cerveja, distribuem presentes pras afilhadas (ou, dez reais - te vira), mas se olharem pras estrelas verão que nada mudou - mesmo que alguém, por travessura, as tenha embaralhado na sombra do céu - nada, nada mudou.

O sol segue nos queimando - As mulheres seguem desconfiando - O pecado continua murmurando - Prisioneiros almejando liberdade alguma - Tartarugas morrendo de solidão

E os acadêmicos lendo seus livros de história!

- Feliz Natal!
- Feliz Natal!
- Feliz Natal!
- Feliz Natal!




(observava tudo isso de baixo da mesa, donde via esses grandes exemplares de crianças tolas, suas barbas e rugas, enquanto a lua da meia-noite não manchava com seu traço a pequena sineta de plástico na terrível guirlanda dependurada.)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

(são tempos corridos)



São tempos corridos
E hoje o poeta tem que se desdobrar
Em poeta
filósofo
centroavante
bajulador
fingidor

vendedor!

São tempos obtusos
E o poeta tem de pedir desculpas
Por ser poeta e não ser, por exemplo
Enfermeiro
Juiz

Mas a desculpa vem, invariavelmente
Em poesia
Curativos, não
Nem tampouco sentenças

São tempos de imagem apenas
E o poeta, papel e caneta

Apenas imagina


domingo, 30 de novembro de 2008

Movediço Blues



Um movediço blues soava na noite.
Andava a passos largos, de modo a apressar a companhia do sol.
As cervejas estranhamente geladas.
Estúpidas.
Ainda havia trabalho a fazer, sabia. Mas sempre havia, e haverá até o dia do nunca.

Parou numa esquina de observar o Movimento da Rua - estava tudo tão parado, não seria difícil se aperceber quando ele chegasse, agitado, com suas suntuosas curvas e efemeras pegadas.

*

Um movediço blues soava na madrugada - estática, dissonante.
Sacou a navalha, roubou dois corações de uma só vez. Colocou-os no bolso, justo, e caminhou, calmo.
As cervejas estranhamente cheias, múltiplas, transbordavam.
Andava a passos largos, não sabia bem por quê.
Já não havia trabalho a fazer. (Mas que besteira, sempre havia, e haveria até o dia do quando.)

Esses passos largos deixaram um longo e espaçado rastro de sangue, espaçando cada vez mais, à medida que os corações vazavam no bolso, e o sangue ia continuamente se esvaziando.
Mas o coração assim, sozinho, não é nada.
No peito, justo, o seu batia encolhido num canto esquerdo qualquer.

Logo se apercebeu: por que tornava a roubar corações, se o que precisava no momento era: pulmão.

E corações assim, sozinhos, não são nada.
E o amor assim, falado, é nada também.

Parou numa esquina a observar o Repouso das Coisas - estava tudo tão frenético, não seria difícil se aperceber quando ele chegasse em forma de folha morta no chão.

*

O movediço blues ainda soava enterrado na manhã.
O café estava estranhamente amargo.
Sentou e esticou as pernas, de modo ocupar mais espaço no mundo.
Ainda havia trabalho a fazer, mas sentia o sono roçando a nuca, lambendo dentro da orelha.
As pálpebras estavam ensopadas de mel, quisera agora ter algumas lágrimas.
Piscava a passos largos, de modo a antecipar e afastar a companhia dos sonhos.
Pagou a conta ou saiu sem pagar - estava tudo tão claro!

Parou em frente ao espelho a observar sua própria versão - estava tudo tão refletido, não seria difícil achar que se é a inversão de alguma coisa.

Lembrou-se também de lamentar nunca estar consciente naquele momento exato em que o sono vinha visitar/


/e naquele momento escorregadio, tendo o testemunho das cores todas dançando juntas, dos olhos distraídos de sonhos verdes, vermelhos, castanhos e amarelos - chegou a cogitar devolver aos donos todos aqueles corações armazenados no sótão, pois havia descoberto que assim, sozinhos, trancados, no meio da poeira aqueles corações não tinham valor nenhum.

Assim como o amor perdido na bagunça do verbo.

*

Esqueceu de apagar as luzes.
Mas naquele dia um movediço blues estamparia de negro
a densa cortina dos seus sonhos vívidos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

relatos do irremediável

elenco:
ele
ela

o farmacêutico



20:22


Abriu aquela tampinha, removeu a bateria, (deu uma sopradinha), tirou o chip, botou de novo, passou um paninho úmido, com esforço, nos cantinhos da cavidade-de-bateria. Depois botou tudo no lugar e religou o celular. Pensou em ligar pra ela.
Hesitou.
Acabou escrevendo uma mensagem de texto pra avó (que não foi entregue / motivo: falta de saldo)

20:44

Olhou a foto do neto. E de outro neto. E de outro neto. E de outro neto.
Suspirou.
Depois voltou e olhou a foto do neto outra vez.
Resmungou.
A bursite havia disfarçado um pouco a dor na panturrilha, pensou.
Sentiu sede e foi até o supermercado. No meio do caminho se arrependeu, e também já não tinha mais sede.
Passou na farmácia, que estava lotada de jovens irreverentes, e solicitou atendimento preferencial. Pedu uma pomada pro ferino farmacêutico
- pra passar no ombro vó?
Achou o rapaz muito gentil mas não sorriu. Voltou pra casa, cansada. (Olhou a foto do neto.)

21:12

Chegou sobressaltada no bar. A amiga, sensível, resolveu não perguntar pelo ..., mas nem precisou, já entrou falando. - ele não quer saber mais de mim! deve estar com outra! E se pôs a chorar copiosamente em plena hora feliz daquele Botequim!
Copiosamente!!(?)
Um rapaz da mesa ao lado, com traços de mágico prestidigitador (e roupa de farmacêutico) ofereceu um choppe escuro e um lenço. Meia hora mais tarde sairam de lá os dois meio que abraçadinhos, ele sorriso no canto do rosto, ela, celular desligado.


<<<<<>VOLTAFITA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


20:22

Tentou ligar pra ele, mas o celular estava fora da área de cobertura. Onde estaria? Na praia? Não, não, (não?), talvez dentro de um supermercado ou caixa-forte, caverna, ou talvez em um bairro remoto da zona norte. Talvez estivesse(..), talvez tenha desligado a porra do celular. Talvez estivesse com outra!!!
Talvez estivesse com a outra!!!
Foi cortar uma abobrinha...
Pra substituir
seja lá o quê!

Mas uma amiga salvadora convidou pra tomar um chope na hora feliz do Butequim. Não hesitou e aceitou a proposta da amiga. Foi pro banho e pensou que se ele ligasse não atenderia.
(Mentira!)


20:44

Era novo na farmácia, mas tinha um instinto aguçado. Quando entraram pela porta ao mesmo tempo um Chato e uma Moça com os grandes peitos escapando do vestido, atendeu a Moça antes.
Ainda que o Chato tivesse chegado primeiro, com um grande nariz de vantagem.
No que o Chato reclamou - direitos iguais!, prontamente respondeu - democracia!, e voltou ligeiro a atender a moça, mostrando claramente o seu voto (ainda que secreto!).

Tudo isso até entrar uma vó mau-humorada, já gritando, - sou velha!, - me atendam já! Pediu um remédio pra dor no ombro. Receitou um Levonorgestrel 0,75 mg, disse que era batata e voltou a atender a moça. Não lembrava pra que servia o Levonorgestrel 0,75mg mas achou o nome bastante musical. A velha foi embora, com o olhar desconfiado típico dessa estirpe desses velhos ranzinzas. Faltava meia hora e um Chato pra acabar o expediente. Sorriu de canto de rosto.


21:12

Precisamente nesse horário resolveu ligar pra ela.
Hesitou.
Andava meio distante da última vez que se viram, ontem-ontem. Será que ela estava pensando em outro? Resolveu ligar, telefone sem serviço. Sabia que deveria trocar de operadora, que essa ... era uma merda!
Pegou então o celular e discou * * * * * * * *
(preciso momento em que se deu conta da sabida falta de saldo!)

Estava suado, exalando por todo o corpo um cheiro semelhante ao do iogurte natural. Não tomou uma ducha e saiu pra ligar pra ela de um orelhão. Mas orelhão é roleta-russa, e de cada 6 só um faz o seu serviço direitinho, geralmente o mais distante.
Meia hora depois enfim acabou encontrando em excelente estado um daqueles telefones públicos destinados aos anões, quando uma nuvem chegou a chuviscar num pequeno espaço de tempo/

(mas não conseguindo outras nuvens adeptas
acabou cancelando a tormenta.)

Discou * * * * * *... * *,

- celular desligado ou fora de serviço.

Onde estaria?
Na praia?
Sentou em um banco de praça e sentiu certa ternura por uma das pombas azuladas que ali vagavam. Pensou em buscar um pouco de milho e distribuir, quem sabe, pra pomba azul e pras suas multi-ornamentadas amiguinhas.

(Hesitou.)


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tempo da piada e outras divagações



1.

Sempre que perdia o tempo da piada, uma dor-geral cobria o corpo todo.

Não era dor, dor, assim, essa dor que estamos acostumados. Tontura, mas não essa tontura que/

1.

Sempre que perdia o tempo da piada, uma sensação esquisita cobria o corpo todo.
A sensação era como esquecer

- Como é mesmo o nome do ator do filme ..

Harry Mulligan?

Não.

Pillow Bergman?

Talvez.

Ninguém ali havia nascido antes de 78 pra saber a resposta.
.
.
.
.
.
.
.
Consultado o google*


* Bill Murray!


Mas o google não era lá nada de mais
pois quando se perdia o tempo da piada
em nada poderia ele ajudar.

2.

ignoramos o fato de que a terminação "ar" ser mãe de todos os verbos nenéns, verbos recém-nascidos, abortados e que virão.

os verbos terminados em "ar" são a prova do infinito sem barreiras.


(um velhaco grego diria)
- mas que falácia te escaba da barreira dos dentes, rapaz!!!

3.

Como distinguir o nós (eu+tu(+eles?)) do nós (eu+eles(sem tu)?)

Mais ou menos como adivinhar a chegada da tropa roçando a orelha na terra, e escutando a vibração dos seus passos na espinha.

Se aponta!

nós, apontando pro próprio peito, a outra mão fazendo movimentos circulares curtos.

(=nós)

nós, pegando no ombro do interlocutor, a outra mão fazendo movimetos circulares largos.

(=nós)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

breve história de um espantoso indivíduo

1.
Entrou no carro, enroscado, jaqueta presa no canto da porta, bateu com a canela, reclamou mas agora parecia recomposto, apesar de gemer e resmungar.

Você observando tudo agachado rente à janela do carona, como que espiando ele ali dentro do veículo, e era exatamente isso que você fazia! – Eu, do seu lado.

Mão no volante, partiu.

2.
Abriu uma lata daquelas cervejas gringas feitas de repolho e um cigarro.
||:bebeu, fumou, soprou, acelerou:||
compasso repetido em mantra, entre curvas, retas e retornos.

Reparou na sua nuca? Aparente cansaço, um arranhão que parecia ser de tigre ou de mulher, quem vai saber?

eu, sentado ao seu lado no banco de trás apostei no tigre - inocência a minha.

3.
Parou num local ermo, abriu a porta e entrou num estratégico postinho de conveniências, cambaleando, deixando uma grossa e densa calda de sangue negro no caminho.
você ficou branca como uma nuvem!
não havia percebido ainda o sangue, nem pelo cheiro?
se houvesse, que diferença faria?

ficamos nós olhando pra ele através da janela do carro até o momento em que desapareceu pra dentro da loja.

o que compraria ele:
- cerveja
- cigarro
- band-aid
(- pá?)

4.
De trás de uma prateleira vimos o olhar da solitária mocinha espantada com o sangue que jorrava sem parar da barriga daquele indivíduo, decia pelas pernas, escalava o ombro.

Disso eu não havia me apercebido
(haveria você?)

Ela quis chamar uma ambulância, um advogado, uma enfermeira ou a polícia. O homem parecia querer só um beijo, o que logo a moça recusou, com náuseas no rosto.

Resolvi me aproximar, te puxando pelo ombro. Chegamos perto, bem perto, com nossos narizes a 1cm do grande rombo que havia agora subsituido o seu umbigo, donde as tripas por vezes escapuliam - e ficavam lá dependuradas até que alguém se apercebesse e rapidamente tratasse de colocá-las pra dentro,
enquanto a atendente tratava de vomitar num pequeno lixo seco, até tudo transbordar junto às latinhas e copos plásticos.

Cochichando no meu ovido, você me sugeriu que dado o mau cheiro, passassemos para um ponto de observação mais distante, em cima dum daqueles ventiladores-de-teto aparentemente inativos.

Boa idéia!

De lá pudemos entender um pouco melhor a situação, dado o campo de visão privilegiado e o ângulo favorável da iluminação.

Aquele homem que aparentemente enfrentava mulheres e tigres, seco com seus litros e litros de sangue jorrando pelos olhos, não: aquele homem aparentemente imortal, aquele sobre-homem guerreiro invencível, pra nós não passava agora de uma pequena formiga. O rombo em sua barriga ele mesmo deve tê-lo feito, do contrário já haveria costurado ou posto um curativo. A nuca deve ter sido sua culpa, ao provocar tão descabidamente tigres ou mulheres. E mesmo nesse estado, fumava, bebia e agora se punha a galantear a atendente

(acabariam se beijando os dois, ferro e bílis?)

Aquele homem que aparentemente seguíamos, e nos inspirávamos, não!: aquele homem aparentemente infinito, aquele sobre homem maldoso e impiedoso, pra nós agora não passava de um pequeno homem.

Isso vimos tudo do ventilador.
(de onde um perfume de maçã-do-rosto beirava o desacato!)

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Violando a Caixa de Pandora.

Fui eu quem abriu a caixa que pertencia à Pandora.

Podia muito bem ter deixado ela por lá, empoeirada, um jarro daqueles de argila com motivos incas, ou coisa parecida, estacado num canto onde a luz mal escorregava e as aranhas já não mais habitavam (com longas pernas).

Liguei uma vela, um cigarro e um assemelhado, lareira paralela, tochas e lampiões e permaneci parado diante da caixa. Que será que tem ali dentro? Dinheiro? Jóias? Documentos? Peças íntimas? Devia ser alguma daquelas coleções de segredos.

A tampa era leve, embora não tivesse bem por onde abrir, como um relevo, uma alça, uma orelha. Puxei com mãos de lagartixa e a tampa caiu no meu colo.

hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

truvão
relampejo
luzes
gemidos
horror

do jarro saíam coisas que não tinham uma palavra correspondente na boca, amálgamas, quirandas, feixes de vozes, reflexões

truvãorrelampejoluzesgemidosehorror

Eu me mantendo sereno, tratei de tampar a caixa-jarro novamente e percebi que lá dentro restava um escarro de esperança. Abracei-me ao jarro-caixa e saí correndo.

Não adiantava mais.

A Doença me agarrou nos pés
- Lepra, candidíase, sarna e rubéola!!!

O Trabalho me puxou pelo braço
- Despertador, desespero, submissão, pão, patrão!!!

A Mentira me fitou de cima
- Sucesso, fama, fortuna, mulheres!!!

A Velhice não me alcançou, porém vociferou de longe
- Mooooorte!

Foi então que a Paixão pôs a mão esguia em meu ombro, sorriu
e nada disse

Posto então que me abracei à Loucura
e saímos ambos
com a Esperança debaixo do braço
desespero perpétuo no fundo do olho!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

fato consumado



Vai aonde?

- Vou embora.

É um problema pra você gostar de mim?

- :|

Então...

- :|

Nada a dizer?

- :/

Eu já sabia, J.W., você não presta! Chega nessa hora sempre sempre fica mudo. Calado
como uma porta!!!
[tapa, expressão no olhar, tapa, chute na altura do joelho]

- pára mulher!

[apertão, empurrão, expressão no olhar, tapa, apertão, apertão, clinch]

- ai, ai, pára de me bater mulher!

não páro não páro não páro não páro não páro não páro não páro não páro não páro!




respondeu às agressões da mulher à altura, com uma cotovelada no fígado, duas cabeçadas alternadas, uma rasteira de cobra e o grosso das técnicas de estrangulamento que tinha aprendido, deu batidas moderadas com sua cabeça no marco da porta, mas rapidamente se arrependeu, principalmente quando a garota começou a se comportar de maneira atípica.

* (cena nº2)

Aí, vejamos!, como nada tivesse acontecido sairam os dois incrivelmente abraçados em direção ao carro, ela no seu colo como recém-casados, olhava nos olhos dela e talvez ela tenha suspirado, embora parecesse exausta.

J.W. foi dirigindo, como era de costume.
Passaram pelos antigos portos e por andorinhas que migravam para o noroeste, até chegarem enfim ao mercado. Ela manteve o semblante neutro que adotara há pouco, ficando assim no carro à espera dele.
Trouxe um vinho argentino, tinto, espesso e seco. Havia esquecido as castanhas de jacú que ela tanto gostava, mas comprou chocolates de duas cores e balas de goma.
Pegou pra si um sanduiche, um croissant pra ela que não demonstraria nenhum entusiasmo.
Comprou também
um cartão
confetes
café
lâmpada
temperos
querosene
rúcula
argila
xampú
papel higiênico
e cebola.



(mas acabou esquecendo a pá!)



segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Economizador de Saudades



Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,

Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

(cora coralina)






Segui à risca o teu conselho:

- Fica aí, impassível, economiza tua saudade.

Tentei me mexer o mínimo possível, de modo que tivesse tudo de importante por perto. Na minha rua tinha a fruteira, a locadora e a farmácia. Igreja não. Saía de casa umas duas vezes no dia, uma bem cedo, no horário onde cantavam os longínquos galos que só eu imaginava. e outra mais tarde, quando a lua interceptava a vista do sol, momento do paradoxo temor em que se podia enxergar o seu reflexo de astro-maior sem ter que encará-lo - olhos flamejantes.

Com o tempo que não cabe nessas linhas, me acometeu uma grande saudade da saudade. Afinal, na minha casa tinha cama banheiro cozinha. Na cozinha geladeira, no pátio a luz do sol seguia refletindo mesmo madrugada adentro. Tudo direitinho. Uma árvore tataracentenária, canários canadenses que há muito não voavam para o norte;

(Embora se notasse uma saudade opaca no seu olhar canoro.)

E eu pensando.

Passei os anos fugindo dessa saudade estampada na minha própria sombra. E hoje tudo o que sinto é.

**

Segui à risca o teu conselho:

- Fica aí, impassível, economiza tua saudade.

Até ver que a saudade é palavra que não existe em nenhuma língua - nem em português! - pretensa palavrinha de se explicar a dor e o amor com o mesmo gesto, bandeira marrom tremulando como nada dissesse.

Hoje sou saudade e semeio saudade. Impassível às vezes, impassível na saudade.

A árvore hoje é um condomínio, não mais de pássaros, mais de homens que passam, de rios de calamidades humanas. Os canários não mais os vi. Será que acharam outra daquelas figueiras tricentenárias? Fruteira, a locadora, a farmácia, nada. Grandes buracos com água escura no fundo. Os galos pararam de cantar, e eu parei então de imaginá-los. Na minha casa já não tinha mais cama, nem banheiro nem cozinha. Não havia casa. A luz do sol que visitava minhas madrugadas agora se escondia marota nos postes de esforçadas luzes elétricas. Minha sombra saiu andando, curva, na sua doentia exigência de uma democracia que não se esperava de um mero espelho monocromático.


Enfim, segui à risca o teu conselho, mas agora quem dá as cartas sou eu, conselheiro de mim mesmo! No xadrez, xeque-mate!

colo
braço
palavra
silêncio
lágrima
olhar
desejo
amor:

e eu, impassível!


terça-feira, 2 de setembro de 2008

Eu, grávido

<>

Comecei a sentir as contrações dia vinte e nove de dezembro. Doía tudo, eu rolava na cama, da cama pro chão, do chão para o banheiro, ia eu rolando e tendo acessos. Vomitei um monte de milho verde. É nojento mas faz parte da descrição, pô. Eu mal conseguia respirar, estava preocupado gritando “não, não posso morrer antes de conhecer o ano novo”, como se fosse grandes merdas conhecer o ano novo. Mas, enfim, estava pra nascer um filho e a dor era horrível. O meu cônjuge não-gay® estava mais nervoso que eu, andando pra lá e pra cá, “vamos pro hospital”, dizia, mas eu retrucava “odeio hospital”. Acabou que as contrações estavam ficando mais fortes, me doía muito o testículo direito, e eu sentia que a criança estava mal-ajeitada no meu ventre, mais pro lado direito, meio desajeitado, como o pai. Pedro seria o nome dele, escolhido às pressas no táxi, onde só não vomitei porque o estofamento era novinho e marronzinho.


Chegamos eu e o meu cônjuge não-gay® na emergência. Ele chegou, nervoso, e disparou “Não temos Unimed”. Normalmente quem não ten Unimed é enviado a uma parteira do SUS que atende numa reserva indígena próxima (uns trezentos quilômetros). Mas graças à lábia do meu cônjuge não-gay® fui atendido ali mesmo. Ainda não era o momento de o Pedro nascer. O enfermeiro disse que não era muito comum homens grávidos naquela época do ano, e que eu era recém o terceiro caso naquele mês. Disse também que era comum desenvolver os nenéns na região do alto ventre, ou até na área da barriga de cerveja mas que o meu caso era mais raro. “Você está com o Pedro no rim”.


Passei o Reveillon paparicado pelos parentes, alguns comprando fraldas, sapatinhos, meinhas de lã para o neném. Tudo amarelo, afinal, não sabíamos ainda se o Pedro ia nascer menino ou menina. Tive desejos estranhos na primeira quinzena de janeiro. Eu TINHA que comer avelãs. E lá foi o meu cônjuge não-gay® comprar avelãs. Aí eu quis avelãs com iogurte de pêssego. E lá foi o meu cônjuge não-gay® comprar o iogurte. Aí eu quis as avelãs misturadas no feijão. E lá foi o meu cônjuge não-gay® misturar as avelãs no feijão. “Agora mistura no sorvete”, disse eu. Ad Infinitum. Dia quinze fui eu pro tal do seu obstetrício que massageou o meu rim e disse, preocupado. “Não estou conseguindo mais encontrar o Pedro no teu rim”. Antes que o meu mundo caísse fui fazer a tal da ecografia. Nem a minha preocupação tirou a mágica do momento. Conselho à vocês: Façam ecografia uma vez na vida, pelo menos. É lindo. A mocinha manda baixar as calças até meio mastro, p passa um gel na barriga e começa a passar aquela máquina. E nada do Pedrinho. Passou aqui, ali. E nada do Pedrinho! “Vai ver ele migrou pro esquerdo”. E NADA DO PEDRINHO! NADA! Ela me olhou com uma cara de pêsame e disparou. “Tu deve ter eliminado o Pedro pela urina”.


Fui comer um xis pensando na insignificância da vida humana.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Pericardíase aguda.


Paixão, insônia, inquietação, paixão. A gente tinha tudo pra dar certo: Paixão, insônia, inquietação e paixão. Tínhamos uma vida inteira pela frente, tudo que agora não passe de um "se...", tudo não passa de um poderia ser. O coração? Ainda bate, bate, bate. Mas as noites são eternas, demoradas como filmes chineses, me reviro de febre, insônia, inquietação, suores noturnos, não agüento, meu deus, não agüento. Deus então responde. "Respire", diz com uma voz grave de locutor antigo. Estou respirando meu deus, estou respirando. O que é isso, o que eu tenho, o que me aflige? "Filho, tens uma escavação de volúpia no ventrículo esquerdo, e a parte esquerda do teu coração infiltrada de luxúria!". Então, meu deus, devo ligar pra ela, dizer pra ela que a amo, dizer que ela é a razão dos meus ais, dizer que darei minha vida inteira pelo nosso amor...? "Não", interrompeu deus, grave:

- A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.