segunda-feira, 23 de março de 2009

A cidade e a ilusão 1

Não sei como começar a descrever a cidade de Portuálira, talvez como uma cidade mágica, onde estão as coisas mais bonitas, pelo menos pra quem mora por lá. Quem vem de fora escuta que Portuálira é a cidade mais desenvolvida da região, embora mendigos com grandes cabeleiras peçam esmolas em cada esquina úmida da cidade. Ouve falar também do clima ameno e temperado na cidade, embora os que cheguem nela desconfiem levemente que o verão é muito quente e o inverno é muito frio, que o outono é muito inconstante e a primavera, xôxa. Mas isso não passa de desconfiança do estrangeiro, pois logo um orgulhoso nativo o convence do contrário, vangloriando-se de andar em mangas de camisa em pleno julho boreal.

Suas praias são simpáticas, embora banhadas por um tosco e sujo lago, lago esse a que todos chamam rio, rio esse que todos imaginam mar, e chegam mesmo a sentir o gosto do sal na boca, mesmo sem jamais banhar-se em suas águas, pois são impróprias pra tal. Seus habitantes orgulham-se de seus antepassados com nome de rua, e todos seus escritores são grandes gênios, inclusive os gênios de fato. Seu povo é o mais culto, indiscutivelmente, e vai ao teatro, cinema, shows de música - de preferência vindos de fora (sim, são um povo muito orgulhoso mas ao mesmo tempo muito hospitaleiro, ora vejam só!) - e tudo isso desde que sobre um bom dinheiro pra cerveja. Inclusive, a melhor cerveja é produzida por lá, e não é vendida em nenhum outro ponto do planeta, talvez por questão de tradição. É a única cidade a ter o pôr-do-sol patenteado, e daí deve vir grande parte de sua renda, em direitos autorais e royalties, que é destinada em grande parte ao lirismo publicitário de engrandecer seus atributos todos.

Receio também que te interesses por saber das mulheres! Ah, as mulheres, essas sim, vi com meus próprios olhos, não se encontram tão bonitas em nenhum lugar do mundo. Lá o projeto da miscigenação foi cuidadosamente elaborado para que a melhor característica de cada raça fosse misturada de modo a produzir a melhor espécie, com supervisão de garbosos especialistas: um bocado de dedicação oriental, higiene indígena, a fogosidadea africana, mas sem, de jeito algum, terem a tez lá muito parda ou os cabelos muito encaracolados, pelo menos não a maioria - ou as que dão a aquela localidade tal fama.

Devo confessar-te que eu próprio conheci uma linda e encantadora mulher em uma de suas imensas ruas, e com todo respeito a vós, soberano, fiquei tentado em me estabelecer de fato nessa cidade de ilusões. Vós me entenderieis: a mulher era a mais linda e inteligente de Portuálira, representava todas as qualidades que vos descrevi acerca do lugar, com um adendo muito importante: não nascera em Portuálira, nem sequer perto!

Daí que essa moça representava o que de melhor havia por lá - o deslumbre e o ilusório que vem de fora - e fez abrir meus olhos para a real feiúra daquela metrópole pretensiosa, com seu sotaque carregado, suas filas, seus engarrafamentos provincianos, a teimosia dos seus velhos, a sua poluição controlada, e toda fantasia em que vive imerso seu povo.

Então pude admirar de verdade a tosquice daquele lugar e a vontade que passou a imperar em mim: a de amar incondicionalmente suas ruas, lombas e contrastes e ao mesmo tempo ter sempre registrada em mim a fixa idéia de fugir e só voltar quando toda a fama e ilusão acerca de Portuálira voltasse a fazer sentido nos meus olhos de estrangeiro nativo.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Kassandra (take 2)

A primeira vez que K. me disse eu te amo estávamos na cama. Eu por cima dela, dentro, o queixo roçando seu pescoço. Aí ela disse, quase sem forças:

- Eu te amo!

, e seguimos um por cima do outro, as barrigas suadas e os gemidos sussurrados.
A impressão que aquele verbo causou não tem nome ou objeto, estava confundida na carne, nas mãos e nos cheiros. Frente à carne, às mãos e cheiros, seria só um eu te amo qualquer, um som como tantos outros que emitimos, um ruído. Mas era o primeiro: era a primeira vez que K. me dizia eu te amo. E estávamos ali, sem roupa, feito animais que somos, e nem sequer olhávamos um nos olhos do outro. Daí rapidamente percebi do vício que temos no olhar e na palavra. Acreditamos no olhar e na palavra, e em casos como esse, os dois juntos se fazem cúmplices.

- Eu te amo!, diria K. me olhando nos olhos, ambos vestidos, de repente, num jantar romântico a luz de velas.

Mas não! No exato momento em que K. me disse - eu te amo!, eu tendia a esfregar meu nariz em seus peitos, com raiva da sua constante beleza. Raciocinava eu como um cachorro raciocina e ela me dizendo coisas como que por instinto: - eu te amo! Forçaria os braços sobre suas coxas - e acho que até o fiz - arranharia lentamente até a altura dos joelhos, aí já com medo dela dizer eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo, e me olhar nos olhos, como num jantar romântico! A luz de velas! Mas não, eu não arranhei suas coxas até a altura dos joelhos e ela não me disse eu te amo nenhuma outra vez naquele mês.

Conto agora essa história de maneira pretensamente linear, mas não foi assim que se sucedeu. Ou foi, na linearidade amarrotada característica da nossa existência. Fui realmente sentir o peso da declaração de K. - eu te amo!, depois, com ela repousando sobre meu peito.

- Você falou "eu te amo"! - perguntei em silêncio.
Ela nada respondeu ou acrescentou, estava ocupada acariciando em círculos o meu bigode.

Fiquei aí entre o medo e a surpresa (perplexo?) com aquela declaração corporal, um eu te amo dito com a carne, a cabeça desligada, os olhos quase fechados. Um eu te amo suspirado.

Pensei na hora que seria mais adequado se dizer uma coisa dessas num jantar a luz de velas. Aí fala:
- Eu te amo!
, com um olhar suplicante.

Aí proponho um brinde, e brindamos.

Ou: Espera um momento de silêncio, entre os goles de vinho (qualquer vinho) e fala:

- Eu te amo!

Mas aquele eu te amo suado entrou pelas minhas narinas, e mais parecia não pertencer ao momento. Um eu te amo estrangeiro, clandestino. Eu te amo impuro, sujo, mas fazer o quê?

Foi aquela justamente a primeira vez que K. me disse eu te amo.

*
Tempos depois K. me disse eu te amo novamente. Estávamos comendo (não lembro o quê), bebendo um vinho sul-africano, ou uruguaio?, nos olhando nos olhos.

No exato momento em que nos acabava o assunto, K. falou em voz pouca:

- Eu te amo!

Aquelas palavras nada significaram.

Propus então um brinde qualquer, mais tarde eu tinha que visitar minha mãe, que estava com febre e saudades.