domingo, 30 de novembro de 2008

Movediço Blues



Um movediço blues soava na noite.
Andava a passos largos, de modo a apressar a companhia do sol.
As cervejas estranhamente geladas.
Estúpidas.
Ainda havia trabalho a fazer, sabia. Mas sempre havia, e haverá até o dia do nunca.

Parou numa esquina de observar o Movimento da Rua - estava tudo tão parado, não seria difícil se aperceber quando ele chegasse, agitado, com suas suntuosas curvas e efemeras pegadas.

*

Um movediço blues soava na madrugada - estática, dissonante.
Sacou a navalha, roubou dois corações de uma só vez. Colocou-os no bolso, justo, e caminhou, calmo.
As cervejas estranhamente cheias, múltiplas, transbordavam.
Andava a passos largos, não sabia bem por quê.
Já não havia trabalho a fazer. (Mas que besteira, sempre havia, e haveria até o dia do quando.)

Esses passos largos deixaram um longo e espaçado rastro de sangue, espaçando cada vez mais, à medida que os corações vazavam no bolso, e o sangue ia continuamente se esvaziando.
Mas o coração assim, sozinho, não é nada.
No peito, justo, o seu batia encolhido num canto esquerdo qualquer.

Logo se apercebeu: por que tornava a roubar corações, se o que precisava no momento era: pulmão.

E corações assim, sozinhos, não são nada.
E o amor assim, falado, é nada também.

Parou numa esquina a observar o Repouso das Coisas - estava tudo tão frenético, não seria difícil se aperceber quando ele chegasse em forma de folha morta no chão.

*

O movediço blues ainda soava enterrado na manhã.
O café estava estranhamente amargo.
Sentou e esticou as pernas, de modo ocupar mais espaço no mundo.
Ainda havia trabalho a fazer, mas sentia o sono roçando a nuca, lambendo dentro da orelha.
As pálpebras estavam ensopadas de mel, quisera agora ter algumas lágrimas.
Piscava a passos largos, de modo a antecipar e afastar a companhia dos sonhos.
Pagou a conta ou saiu sem pagar - estava tudo tão claro!

Parou em frente ao espelho a observar sua própria versão - estava tudo tão refletido, não seria difícil achar que se é a inversão de alguma coisa.

Lembrou-se também de lamentar nunca estar consciente naquele momento exato em que o sono vinha visitar/


/e naquele momento escorregadio, tendo o testemunho das cores todas dançando juntas, dos olhos distraídos de sonhos verdes, vermelhos, castanhos e amarelos - chegou a cogitar devolver aos donos todos aqueles corações armazenados no sótão, pois havia descoberto que assim, sozinhos, trancados, no meio da poeira aqueles corações não tinham valor nenhum.

Assim como o amor perdido na bagunça do verbo.

*

Esqueceu de apagar as luzes.
Mas naquele dia um movediço blues estamparia de negro
a densa cortina dos seus sonhos vívidos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

relatos do irremediável

elenco:
ele
ela

o farmacêutico



20:22


Abriu aquela tampinha, removeu a bateria, (deu uma sopradinha), tirou o chip, botou de novo, passou um paninho úmido, com esforço, nos cantinhos da cavidade-de-bateria. Depois botou tudo no lugar e religou o celular. Pensou em ligar pra ela.
Hesitou.
Acabou escrevendo uma mensagem de texto pra avó (que não foi entregue / motivo: falta de saldo)

20:44

Olhou a foto do neto. E de outro neto. E de outro neto. E de outro neto.
Suspirou.
Depois voltou e olhou a foto do neto outra vez.
Resmungou.
A bursite havia disfarçado um pouco a dor na panturrilha, pensou.
Sentiu sede e foi até o supermercado. No meio do caminho se arrependeu, e também já não tinha mais sede.
Passou na farmácia, que estava lotada de jovens irreverentes, e solicitou atendimento preferencial. Pedu uma pomada pro ferino farmacêutico
- pra passar no ombro vó?
Achou o rapaz muito gentil mas não sorriu. Voltou pra casa, cansada. (Olhou a foto do neto.)

21:12

Chegou sobressaltada no bar. A amiga, sensível, resolveu não perguntar pelo ..., mas nem precisou, já entrou falando. - ele não quer saber mais de mim! deve estar com outra! E se pôs a chorar copiosamente em plena hora feliz daquele Botequim!
Copiosamente!!(?)
Um rapaz da mesa ao lado, com traços de mágico prestidigitador (e roupa de farmacêutico) ofereceu um choppe escuro e um lenço. Meia hora mais tarde sairam de lá os dois meio que abraçadinhos, ele sorriso no canto do rosto, ela, celular desligado.


<<<<<>VOLTAFITA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


20:22

Tentou ligar pra ele, mas o celular estava fora da área de cobertura. Onde estaria? Na praia? Não, não, (não?), talvez dentro de um supermercado ou caixa-forte, caverna, ou talvez em um bairro remoto da zona norte. Talvez estivesse(..), talvez tenha desligado a porra do celular. Talvez estivesse com outra!!!
Talvez estivesse com a outra!!!
Foi cortar uma abobrinha...
Pra substituir
seja lá o quê!

Mas uma amiga salvadora convidou pra tomar um chope na hora feliz do Butequim. Não hesitou e aceitou a proposta da amiga. Foi pro banho e pensou que se ele ligasse não atenderia.
(Mentira!)


20:44

Era novo na farmácia, mas tinha um instinto aguçado. Quando entraram pela porta ao mesmo tempo um Chato e uma Moça com os grandes peitos escapando do vestido, atendeu a Moça antes.
Ainda que o Chato tivesse chegado primeiro, com um grande nariz de vantagem.
No que o Chato reclamou - direitos iguais!, prontamente respondeu - democracia!, e voltou ligeiro a atender a moça, mostrando claramente o seu voto (ainda que secreto!).

Tudo isso até entrar uma vó mau-humorada, já gritando, - sou velha!, - me atendam já! Pediu um remédio pra dor no ombro. Receitou um Levonorgestrel 0,75 mg, disse que era batata e voltou a atender a moça. Não lembrava pra que servia o Levonorgestrel 0,75mg mas achou o nome bastante musical. A velha foi embora, com o olhar desconfiado típico dessa estirpe desses velhos ranzinzas. Faltava meia hora e um Chato pra acabar o expediente. Sorriu de canto de rosto.


21:12

Precisamente nesse horário resolveu ligar pra ela.
Hesitou.
Andava meio distante da última vez que se viram, ontem-ontem. Será que ela estava pensando em outro? Resolveu ligar, telefone sem serviço. Sabia que deveria trocar de operadora, que essa ... era uma merda!
Pegou então o celular e discou * * * * * * * *
(preciso momento em que se deu conta da sabida falta de saldo!)

Estava suado, exalando por todo o corpo um cheiro semelhante ao do iogurte natural. Não tomou uma ducha e saiu pra ligar pra ela de um orelhão. Mas orelhão é roleta-russa, e de cada 6 só um faz o seu serviço direitinho, geralmente o mais distante.
Meia hora depois enfim acabou encontrando em excelente estado um daqueles telefones públicos destinados aos anões, quando uma nuvem chegou a chuviscar num pequeno espaço de tempo/

(mas não conseguindo outras nuvens adeptas
acabou cancelando a tormenta.)

Discou * * * * * *... * *,

- celular desligado ou fora de serviço.

Onde estaria?
Na praia?
Sentou em um banco de praça e sentiu certa ternura por uma das pombas azuladas que ali vagavam. Pensou em buscar um pouco de milho e distribuir, quem sabe, pra pomba azul e pras suas multi-ornamentadas amiguinhas.

(Hesitou.)


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tempo da piada e outras divagações



1.

Sempre que perdia o tempo da piada, uma dor-geral cobria o corpo todo.

Não era dor, dor, assim, essa dor que estamos acostumados. Tontura, mas não essa tontura que/

1.

Sempre que perdia o tempo da piada, uma sensação esquisita cobria o corpo todo.
A sensação era como esquecer

- Como é mesmo o nome do ator do filme ..

Harry Mulligan?

Não.

Pillow Bergman?

Talvez.

Ninguém ali havia nascido antes de 78 pra saber a resposta.
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Consultado o google*


* Bill Murray!


Mas o google não era lá nada de mais
pois quando se perdia o tempo da piada
em nada poderia ele ajudar.

2.

ignoramos o fato de que a terminação "ar" ser mãe de todos os verbos nenéns, verbos recém-nascidos, abortados e que virão.

os verbos terminados em "ar" são a prova do infinito sem barreiras.


(um velhaco grego diria)
- mas que falácia te escaba da barreira dos dentes, rapaz!!!

3.

Como distinguir o nós (eu+tu(+eles?)) do nós (eu+eles(sem tu)?)

Mais ou menos como adivinhar a chegada da tropa roçando a orelha na terra, e escutando a vibração dos seus passos na espinha.

Se aponta!

nós, apontando pro próprio peito, a outra mão fazendo movimentos circulares curtos.

(=nós)

nós, pegando no ombro do interlocutor, a outra mão fazendo movimetos circulares largos.

(=nós)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

breve história de um espantoso indivíduo

1.
Entrou no carro, enroscado, jaqueta presa no canto da porta, bateu com a canela, reclamou mas agora parecia recomposto, apesar de gemer e resmungar.

Você observando tudo agachado rente à janela do carona, como que espiando ele ali dentro do veículo, e era exatamente isso que você fazia! – Eu, do seu lado.

Mão no volante, partiu.

2.
Abriu uma lata daquelas cervejas gringas feitas de repolho e um cigarro.
||:bebeu, fumou, soprou, acelerou:||
compasso repetido em mantra, entre curvas, retas e retornos.

Reparou na sua nuca? Aparente cansaço, um arranhão que parecia ser de tigre ou de mulher, quem vai saber?

eu, sentado ao seu lado no banco de trás apostei no tigre - inocência a minha.

3.
Parou num local ermo, abriu a porta e entrou num estratégico postinho de conveniências, cambaleando, deixando uma grossa e densa calda de sangue negro no caminho.
você ficou branca como uma nuvem!
não havia percebido ainda o sangue, nem pelo cheiro?
se houvesse, que diferença faria?

ficamos nós olhando pra ele através da janela do carro até o momento em que desapareceu pra dentro da loja.

o que compraria ele:
- cerveja
- cigarro
- band-aid
(- pá?)

4.
De trás de uma prateleira vimos o olhar da solitária mocinha espantada com o sangue que jorrava sem parar da barriga daquele indivíduo, decia pelas pernas, escalava o ombro.

Disso eu não havia me apercebido
(haveria você?)

Ela quis chamar uma ambulância, um advogado, uma enfermeira ou a polícia. O homem parecia querer só um beijo, o que logo a moça recusou, com náuseas no rosto.

Resolvi me aproximar, te puxando pelo ombro. Chegamos perto, bem perto, com nossos narizes a 1cm do grande rombo que havia agora subsituido o seu umbigo, donde as tripas por vezes escapuliam - e ficavam lá dependuradas até que alguém se apercebesse e rapidamente tratasse de colocá-las pra dentro,
enquanto a atendente tratava de vomitar num pequeno lixo seco, até tudo transbordar junto às latinhas e copos plásticos.

Cochichando no meu ovido, você me sugeriu que dado o mau cheiro, passassemos para um ponto de observação mais distante, em cima dum daqueles ventiladores-de-teto aparentemente inativos.

Boa idéia!

De lá pudemos entender um pouco melhor a situação, dado o campo de visão privilegiado e o ângulo favorável da iluminação.

Aquele homem que aparentemente enfrentava mulheres e tigres, seco com seus litros e litros de sangue jorrando pelos olhos, não: aquele homem aparentemente imortal, aquele sobre-homem guerreiro invencível, pra nós não passava agora de uma pequena formiga. O rombo em sua barriga ele mesmo deve tê-lo feito, do contrário já haveria costurado ou posto um curativo. A nuca deve ter sido sua culpa, ao provocar tão descabidamente tigres ou mulheres. E mesmo nesse estado, fumava, bebia e agora se punha a galantear a atendente

(acabariam se beijando os dois, ferro e bílis?)

Aquele homem que aparentemente seguíamos, e nos inspirávamos, não!: aquele homem aparentemente infinito, aquele sobre homem maldoso e impiedoso, pra nós agora não passava de um pequeno homem.

Isso vimos tudo do ventilador.
(de onde um perfume de maçã-do-rosto beirava o desacato!)