quinta-feira, 6 de novembro de 2008

breve história de um espantoso indivíduo

1.
Entrou no carro, enroscado, jaqueta presa no canto da porta, bateu com a canela, reclamou mas agora parecia recomposto, apesar de gemer e resmungar.

Você observando tudo agachado rente à janela do carona, como que espiando ele ali dentro do veículo, e era exatamente isso que você fazia! – Eu, do seu lado.

Mão no volante, partiu.

2.
Abriu uma lata daquelas cervejas gringas feitas de repolho e um cigarro.
||:bebeu, fumou, soprou, acelerou:||
compasso repetido em mantra, entre curvas, retas e retornos.

Reparou na sua nuca? Aparente cansaço, um arranhão que parecia ser de tigre ou de mulher, quem vai saber?

eu, sentado ao seu lado no banco de trás apostei no tigre - inocência a minha.

3.
Parou num local ermo, abriu a porta e entrou num estratégico postinho de conveniências, cambaleando, deixando uma grossa e densa calda de sangue negro no caminho.
você ficou branca como uma nuvem!
não havia percebido ainda o sangue, nem pelo cheiro?
se houvesse, que diferença faria?

ficamos nós olhando pra ele através da janela do carro até o momento em que desapareceu pra dentro da loja.

o que compraria ele:
- cerveja
- cigarro
- band-aid
(- pá?)

4.
De trás de uma prateleira vimos o olhar da solitária mocinha espantada com o sangue que jorrava sem parar da barriga daquele indivíduo, decia pelas pernas, escalava o ombro.

Disso eu não havia me apercebido
(haveria você?)

Ela quis chamar uma ambulância, um advogado, uma enfermeira ou a polícia. O homem parecia querer só um beijo, o que logo a moça recusou, com náuseas no rosto.

Resolvi me aproximar, te puxando pelo ombro. Chegamos perto, bem perto, com nossos narizes a 1cm do grande rombo que havia agora subsituido o seu umbigo, donde as tripas por vezes escapuliam - e ficavam lá dependuradas até que alguém se apercebesse e rapidamente tratasse de colocá-las pra dentro,
enquanto a atendente tratava de vomitar num pequeno lixo seco, até tudo transbordar junto às latinhas e copos plásticos.

Cochichando no meu ovido, você me sugeriu que dado o mau cheiro, passassemos para um ponto de observação mais distante, em cima dum daqueles ventiladores-de-teto aparentemente inativos.

Boa idéia!

De lá pudemos entender um pouco melhor a situação, dado o campo de visão privilegiado e o ângulo favorável da iluminação.

Aquele homem que aparentemente enfrentava mulheres e tigres, seco com seus litros e litros de sangue jorrando pelos olhos, não: aquele homem aparentemente imortal, aquele sobre-homem guerreiro invencível, pra nós não passava agora de uma pequena formiga. O rombo em sua barriga ele mesmo deve tê-lo feito, do contrário já haveria costurado ou posto um curativo. A nuca deve ter sido sua culpa, ao provocar tão descabidamente tigres ou mulheres. E mesmo nesse estado, fumava, bebia e agora se punha a galantear a atendente

(acabariam se beijando os dois, ferro e bílis?)

Aquele homem que aparentemente seguíamos, e nos inspirávamos, não!: aquele homem aparentemente infinito, aquele sobre homem maldoso e impiedoso, pra nós agora não passava de um pequeno homem.

Isso vimos tudo do ventilador.
(de onde um perfume de maçã-do-rosto beirava o desacato!)

Nenhum comentário: